Um texto do "Expresso" de 26.06.10 fornece-me o ponto de partida para ainda uma re-reflexão sobre o enorme equívoco em que inquestionavelmente se tornou o "socialismo" do Estado [e dos estados] neo-liberais "modernos" [temporalmente modernos, conceptualmente "pós-modernos", para ser mais exacto e tendo especificamente em conta o conteúdo de tópica inorganicidade que agrego estavelmente aos termos "pós-moderno" e "pós-modernidade"].
É um texto de Henrique Raposo que se chama "Fadas socialistas" e que discorre magistral [e, ao que parece, ironicamente, também] sobre o problema dos direitos adquiridos.
Dos direitos adquiridos---ele não diz [bruuuuxo!]---pela sociedade civil situada imediatamente abaixo do reduzidíssimo número dos detentores do poder económico-financeiro, em Portugal---que é, aliás, como é sabido, a quase totalidade dela, num país e, em geral num universo geo-económico e geo-financeiro---erraticamente político...---por uma insondável razão qualquer chamado "União" e "Europeia" e que, como só não vê quem não quer, desemprega mais e mais sistemicamente, com maior soltura e "prodigalidade" do que aquela com Marcelo Rebelo de Sousa não lê os livros que, apesar disso, recomenda entusiasticamente aos tontos que o ouvem ou daquela com que o reduzido engenheiro que nos governa se mete em trapalhadas, argalhadas e salsifrés de toda a espécie.
Dos direitos adquiridos dos "happy few" que dispõem da propriedade, nem uma palavra para questioná-los.
Rodeando-se de um Direito monstruoso feito à medida para legalizar a escandalosa e obscena prostituição laboral que é suposto ser o paradigma da futuridade, o neo-liberalismo no geo-poder "europeu" converteu já a condição proletária de outros tempos num impensavelmente obsceno facto de casino no contexto do qual viver [ou até mesmo, antes já disso: nascer] se tornou já definitivamente na "aventura radical", no desporto "sem limites" ou, de modo mais de acordo com a tradição espectacular ocidental, no salto mortal sem rede que nunca se sabe ao certo se não vai acabar em tragédia.
Tragédia neste caso da precariedade concebida como bitola civilizacional de "empregabilidade" e, por conseguinte, de existência individual e colectiva, generacional e especificamente: económica, social, existencial---total.
Porque o problema é: para estes advogados frequentíssimos da pós-modernidade laboral [e social!] Portugal para permanecer possível tem não apenas de... "ser dois" mas de aprender a viver com a "desesperada utopia" de "ser dois" e de convertê-la mesmo num Direito formal e, no limite, no fim de tudo, "en fin de partie", numa "cultura".
Está assim decretada [ou à bica para sê-lo se as sonolentas Esquerdas nacionais e europeias não decidirem acordar de vez do seu sono de púdicas cinderelas políticas] a emergência histórica e política de uma espécie de meta-proletariado referencial ["meta" porque se trata, na realidade, de levar o velho conceito de "fragilidade proletária" sistemicamente útil às derradeiras consequências, retirando-lhe, na prática, o que restava de quanto tradicionalmente o foi conseguindo manter "economica e social ou politicamente sustentável" ou "sustentabilizado": o tal Estado Social que lhe ia partmitindo, "tant bien que mal", conservar-se respirando como classe e, desse modo, oficialmente vivo] até aqui disfarçado de um "desproletariado sistémico" configurado nas massas populacionais cada vez mais numerosas cuja redundância operativa para o seu próprio funcionamento "normal" o sistema "comprava" [comprando, de passo, o seu próprio futuro e a sua própria posssibilidade ulterior imediata] exactamente com os dinheiros do Estado "Social" na forma de todo o género de subsídios regulares atribuídos, como despesa corrente e, sobretudo, regular, [des] estrutural, ínsita, à "inutilidade sistémica tópica" [rendimentos mínimos, subsídios de desemprego, etc. etc.]
De facto, para quem não vivia com os olhos prudentemente fechados para a realidade, o velho proletariado industrial, em resultado do modo como o sistema investiu [foi obrigado pela sua própria dinâmica des/estrutural a investir!"] na capitalicização sistémica do saber convertido em matéria-prima essencial na produção contínua de capital, havia já há muito ido sendo convertido num desproletariado regular pago com dinheiros públicos para se manter fora do circuito producional reentrando na sociedade pela "porta das traseiras" de um mercado que era preciso manter funcionante para que todo o sistema se seguisse "justificando".
Depois, quando as quantidades maciças de conhecimento investidas no processo de re/produção de capital se tornaram objectualmente disfuncionais reduzindo até à pré-insustentabilidade global o espaço reservado tradicionalmente ao chamado capital variável, à mão-de-obra, ao trabalho humano, ao emprego, esse "desproletariado sistémico" foi-se convertendo, de forma subtil mas ainda assim perfeitamente reconhecível, no ultraproletariado [no plano social e político, na cidadania funcional] que hoje é e que hoje---dizem-nos os gurus do sistema como aquele Henrique Raposo cujo texto começo por citar] tem de aceitar pacificamente ser a fim de salvar o próprio sistema da autofagia e da implosão fatais.
É por isso que eu falo no motivo ou na "tese" dos "dois Portugais": de [a] um exíguo mas cultu[r]al e politicamente 'sacralizado' Portugal possidente cujos "direitos" de reprodução contínua de capital [com a geração regular de lucros de nível não nacional mas "global"] não apenas não podem ser postos em causa como devem ser avidamente desejados [constituindo uma verdadeira "consumation devoutly to be wished", como diria Shakespeare"...] e abençoados em nome da sustentabilidade presente e futura [ou do "resgate"] do próprio sistema como tal; ao lado de um "outro Portugal" ancilar e dependente [dependente da boa vontade do primeiro este último enquanto sacerdote consagrado do Deus-economia de cuja felicidade específica dependem todas as felicidades humanas possíveis...] cujos direitos têm de ser severa e mesmo acética ou espartanamente contidos a fim de que a "des-igualicidade ou descentralidade funcional" do sistema continue [volto a dizer "tant bien que mal"] continue a parecer a respectiva saúde sistémica e a respectiva normalidade estrutural.
É por isso que eu digo também que para este sistema a gnoseotopia de que ele se reivindica não paassa, na realidade, de uma "anedota epistemológica e civilizacional" ou "política" [muito] mal contada.
Porque, voltando ao tema central do texto do "Expresso", aquilo de que aí como em tantas outras "bíblias" neo-liberais, se trata é de "pendurar" de vez um conjunto nuclerar básico de leis humanas e naturais [comer, beber, abrigar-se e/ou vestir-se] num outro conjunto im/puramente circunstancial de leis ditas "políticas" que gerem a suspensão "estratégica" das primeiras sempre que assim o entendam ou que a felicidade do 'sistema' o exija e decrete.
Como acto de cultura e representação ideológica tem, no mínimo, tudo isto, que se lhe diga; o problema [o meu, o seu, o de todos nós, sociedade portuguesa] é: alguém está verdadeiramente interessado ou é capaz de dizê-lo?
Como acto de cultura e representação ideológica tem, no mínimo, tudo isto, que se lhe diga; o problema [o meu, o seu, o de todos nós, sociedade portuguesa] é: alguém está verdadeiramente interessado ou é capaz de dizê-lo?
[Na imagem: "Virgem Velada" de Giovanni Strazza, extraída com a vénia devida de heritage-dot-nf]
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