Vem no "Público" de hoje, dia 03.07.10, um artigo extremamente interessante escrito por João Arriscado Nunes, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, intitulado "As ciências sociais em tempo de crise".
Interessante [deveria, em bom rigor e justiça, ter escrito, não apenas interessante mas, sobretudo, importante!] porque vem, ainda uma vez, levantar um problema ele mesmo essencial de umn ponto de vista civilizacional e humanista que C.P.Snow abordou, num livro famosíssimo ["As Duas Culturas"] de forma, hoje-por-hoje, já, à sua maneira, clássica que é o problema da "biculturalidade polar" ou, se assim preferirmos dizer, da "alienação" [da obsessiva absolutização ou fechamento epistemologico total] das formas de conhecimento humano aplicadas à História e, de um modo ou de outro, directa ou indirectamente, à Política.
À definição objectiva ou, como prefiro dizer: objectual de "paradigmas tópicos de desenvolvimentalidade" que no fundo nos envolvem a todos enquanto personagens e, de um modo ou de outro, actores directos.
O exemplo máximo que costumo apresentar [quanto mais não seja, a mim próprio...] das disfuncionalidades inevitavelmente decorrentes de um entendimento e um uso unidimensionais, como diria Marcuse, da cultura e especificadamente do saber, do conhecimento, é-nos dado pela Alemanha nazi [curiosamente e de uma forma aparentemente---um pouco pelo menos---paradoxal, com, nesse caso, o apoio ou a sofística e astuciosa pretextuação da própria Filosofia através de Nietzsche [1].
Alemanha nazi [a meu ver, o apex de um paradigma de industrialidade que se inicia em Inglaterra com a Revolução que leva geralmente essa designação e a que o socialismo, os vários socialismos, de Owen a Marx vêm, precisamente, oferecer o contraponto de uma epistemologia e de uma ética específicas que ele, paradigma, acaba por se ver forçado a integrar, daí resultando as formas comuns de "democracia funcional" ainda hoje vigentes no Ocidente facilmente confundidas com Democracia tout court]; Alemanha nazi onde, dizia, exactamente a absolutização do conhecimento objectivo, desprovido de reflexão epistemológica transversante, digamos assim, conduziu topicamente à reinvenção secundária, perversamente ulteriorizada e aperfeiçoada, da barbárie relativamente à qual deveria em tese constituir o exacto contrário.
O que eu quero muito claramente dizer---num certo sentido lato dialectizante com Snow, Russell e todos quantos filosofaram sobre as relações necessárias do conhecimento científico com a Civilização---dizer é que a ciência nunca fica completa sem a reflexão filosófica sobre as suas próprias e específicas formulações, nunca devendo um saber considerar-se "pronto" ou "pronto a usar" na História ou a passar a [fundamento de] civilização sem ter integrado em si as reflexões de uma ética [se quisermos "natural", desejavelmente plural, polipolar] que lhe confira dimensão humanística e, por conseguinte, a chancela [argumentativa, ao menos] da verdadeira Cultura.
O prof. Arriscado Nunes invoca as ciências sociais i.e. uma cultura de reflexão ou de sistémica reflexionalidade social ["sociante" ou "sociadora", na minha semântica e no meu léxico privados...] para "abrir" e manter "aberta" a História" a formas de inteligência dinâmica e global da realidade onde cada coisa do conhecimento adquira um lugar crítico orgânico e, ao mesmo tempo, desejavelmente dialéctico no contexto das tarefas de construirb osd paradigmas de civilizacionalidade que todos, como sociedade ou sociedades, vamos, imediatamente a seguir, habitar.
Eu próprio tenho, por mais de uma vez, no contexto da minha actividade profissional docente como no círculo mais estreito da minha vida privada, com a frequência possível, chamado a atenção para a incompletitude radical e até, em mais de um sentido, des-estrutural [desde logo, no preciso sentido em que a aborda, no seu artigo, o Prof. Nunes, ou seja, vendo-a e descrevendo-no-la como o sucedâneo objectual da Filosofia e, por conseguinte, no plano político, da própria liberdade em quev eloa já se converteu]; eu próprio, dizia, tenho, sempre que a ocasião se me oferece, chamado a atenção para a condição "imperfeitamente ciencial" [outro neologismo meu] da chamada "ciência económica", a qual, na realidade, tal como eu a vejo, não passa, no limite, de uma mera técnica de transposição "formalmente organizada" da Política para a História, não possuindo, todavia [é a minha tese] verdadeira e genuína, demonstrável, identidade epistemológica autónoma relativamente à ideologia.
E dou um exemplo que vai, aliás, estou persuadido, ao encontro daqulo que o prof. Nunes equaciona no seu artigo sobre o "empochement" da reflexão filosófica completamente ou quasi-completamente engolida pela "economia", no nossos tempo político e civilizacional constituindo, de resto, a meu ver, um traço tópico verdadeiramente distintivo e marcante dele.
É hoje "consensual" [chamo a atenção para as aspas a cujo uso intencionalmente aqui recorri!] que a actual "crise" económico-financeira [na realidade, a meu ver, muito mais do que isso mas enfim!...] "apenas pode resolver-se" aumentando a receita, diminuindo a despesa ou, nas teses mistas, recorrendo a uma espécie de simbiose funcional de ambas.
A "tese científica" é-nos todos os dias redemonstrada por toda o tipo de especialistas que, recvorrendo aos quadros matemáticos que supostamente conferem cientificidade às suas formulações nos vêm evidenciar não apenas que assim o tem de ser assim como, inclusive e num certo sentido, sobretudo, o por que tem de ser assim da questão.
Ora, a minha própria tese é que os especialistas em causa só começam a ser científicos, i.e. só ultrapassam no sentido e na direcção certas a fronteira entre o pensar cientiforme e a ideologia quando iniciam o que poderíamos seguramente designar pela "matematicização epifenoménica ou instrumental-funcional" do problema.
A montante desse estádio de reflexionação específica existe uma bifurcação absolutamente determinante que se situa, repito, ainda em plena ideologia: porque se, como eu defendo, a bicicleta for, afinal... um triciclo e tiver, por conseguinte, não duas mas três rodas---a despesa, a receita e a propriedade, imediatamente toda a camada ou toda fase, todo o estádio, supostamente científicos do problema passam, de imediato, a ser "matematizáveis" numa direcção e num sentido radicalmente distintos.
Se, com efeito, como eu defendo, nos encontrarmos por razões que seria dispersivo detalhar neste momento, acabámos como sociedade histórica e/ou paradigma político e civilizacional por nos encontrar perante uma "esquina", um "vértice" ou um "ângulo" decisivos da História exactamente porque a gestão da equação despesa/receita/propriedade deixou de ser possível nos exactos termos em que, "tant bien que mal", no Ocidente democapitalista o fora até aqui [ou seja, conservando a propriedade, no fundo, completamente fora da História e/ou do alcance da acção desta, na condição totémica que tenta ainda hoje, em plena crise, a todo o custo---e é mesmo a todo o custo!---conservar e manter]; se assim é, dizia, é exactamente porque os nossos modelos matemáticos vigentes, os do sistema, i.e., a sua perspectiva essencialmente política de matematizar o real [económico, social, etc.] não eram---nunca foram---efectivamente científicos.
Foram, sim, repito, técnicos---não científicos: faltou-lhes a componente reflexional filosófica para poderem aspirar com fundamento demonstrável a sê-lo.
Concluindo: é vital [e hoje mais do que nunca numa altura em que as peças do xadrez da História mudaram demonstravelmente de geometria relativa tendo-se, de passo, alterado substantivamente o seu conteúdo, não apenas relacional mas sobretudo específico, próprio de cada uma delas] que se abram as ciências e as ciencialidades como a Economia à reflexão dialéctica através dav reconsideração substantiva, nuclear, do papel da Filosofia na definição e no reconhecimento---na consagração epistemológica---do que chamamos as "ciências" e o próprio pensar próprio de cada um delas e da Ciência em geral.
Só assim se abrirá consequentemente o caminho da "gnoseotopia" ou da Sociedade e da História "gnoseotópicas", hoje-por-hoje, por quanto até aqui disse, um mero mito astuciosamente usado pelo poder político vigente para [tentar] justificar e legitimar as diversas formas de "neo-primitivismo tecnológico" correntemente com aquelas confundidas sobre os quais assenta o seu paradigma próprio de exploração e habitação ou gestão completamente inorgânicas e disfuncionais da História.
NOTA
[1] Alfred Hitchcock estuda este fenómeno da apropriação espúria, ela própria demasiado unidimensional, da Filosofia pela prática num célebre tour-de-force fílmico intitulado "Rope" onde a personagem de 'Rupert Cadell', desempenhada no écrã por James Stewart, desempenha este papel do filósofo especulativo apanhado [e retido indefeso] nas malhas da prática excessivamente fiel das suas ideações sobretudo especulativas e, no bom ou no mau sentido, académicas]
[Imagem, "Blind Man's Buff/Cabra Cega", extraída com a devida vénia de fotolibra-dot-com]
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