A edição de 23.07.10 do "Público" incluía um extenso texto de José Manuel Fernandes, antigo director do jornal, artigo esse cujo título, uma curiosíssima [e subtilmente provocatória] "citação" de Goebbels, me chamou naturalmente a atenção---como, de resto era, obviamente, pretensão de quem o escolheu.
Chama-se a peça em questão: "Quando ouço falar de mais liberdade, puxo logo da pistola".
Aparentemente, a "liberdade" que tende a fazer de um, julgo eu que, pacífico, sereno e responsável, pacato, ex-director de jornal, o feroz pistoleiro que o título tão sonora e tão determinadamente anuncia não é tanto a liberdade em si como a de contestar ou a de divergir do [legítimo, como é óbvio, embora não exclusivo] conceito de liberdade do próprio articulista, tal como fica claro da leitura do derradeiro parágrafo do texto.
Trata-se obviamente, neste ponto em concreto como em tudo o mais que, em termos reais, o artigo contém, de uma questão ideológica que não me proponho aqui debater, mesmo desta forma apenas indirecta, com José Manuel Fernandes [liberalismo vs. Estado orgânico ou Estado consciência, designações---e, sobretudo, conceituações subjacentes---que assumidamente prefiro ao, hoje-por-hoje, mais do que desacreditado termo 'Estado Social'].
Nesta matéria, José Manuel Fernandes tem as ideias que tem, eu tenho as minhas, cada um de nós defende as suas como sabe e pode e ponto final.
Creio, aliás, que são, as de Fernandes e as minhas, em matéria de paradigma estrutural [e civilizacional] de relacionalidade tópica entre a Economia e a Política de tal modo distintas e tão radicamente divergentes que nem vale a pena discutir muito porque o resultado final apenas pode ser a inconciliação e a discordância, puras e [se calhar nada...] simples.
A questão não é, pois, essa: a questão é, em meu entender, claramente a admissão inequívoca por parte do articulista de uma realidade que vem há muito sendo defendida pela Esquerda, i.e. pelo Partido Comunista e pelos sindicatos [com exclusão natural dos sempre "programaticamente ambíguos" "submarinos amarelos" da U.G.T.] a saber: que a originalmente generosa ideia/projecto de um Estado não apenas "funcionalmente democrático" [ou "demomórfico"] e instrumentalmente "solidário" mas verdadeiramente democrático e humanista expresso desde logo na figura política de um Estado institucionalizadamente social tem vindo, sobretudo desde o período de refluxo económico, social e político verdadeiramente sistémico que foi o "primeiro cavaquismo", a ser disfarçadamente desmontado e levado para o autêntico "armazém de equívocos e mitos políticos de todo o tipo" em que se foi gradualmente convertendo a República em Portugal, de '75 para cá.
Contra-argumentando [bem acaloradamente, aliás!] as aduções de António Arnaut [este, por seu turno, uma espécie de 'espectro errante' mais ou menos hamletiano do "pê-ésse que foi" ou do "pê-ésse" que muitos julgaram credulamente ter sido...] em matéria social, põe Fernandes, ponto por ponto, a nu as sucessivas "mutilações estratégicas" introduzidas progressivamente pela direita "lustrosa" do "pê-ésse-dê" no edifício do Estado Social que a pseudo-esquerda ou "esquerda funcional" do "pê-ésse" de Soares e Ca. Lda. não havia encontrado, nas várias vezes em que foi poder, condições objectivas e subjectivas para extinguir de vez, tendo-se, por isso, limitado a ir, como pôde, subtilmente e muito em surdina minando aquele.
Tem toda a razão Fernandes [como a tinha, aliás, antes tido a Esquerda marxista] quando aponta o dedo ao "tendencialmente gratuito" como constituindo uma versão astutamente soft [amplamente denunciada, aliás, insisto, pela Esquerda!] do não-expresso, porém claramente subjacente, "tendencialmente pago" a que a fórmula anterior [espantosamente hipócrita, matreiramente dissimulada e imperdoavelmente cobarde!] abria [escancarava!] sonsamente a porta; continua a ter razão quando aponta as chamadas "taxas moderadoras" na Saúde como constituindo, por sua vez, objectiva e tecnicamente, um pagamento "na hora" e tem-na, por fim, quando refere o momento verdadeiramente "angular" de implosão des/estrutural simbólica e nada inocente do princípio da universalidade que está contido [ou que está consagrado] no princípio de "ter em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos" quando se trate da prestação de "serviços" do Estado ainda, genérica [porém, cada vez menos fundadamente!], dito "Social".
Agora, o que se passa [e isto é claramente ideologia!] é que, em vez de utilizar o conhecimento desta realidade para corrigir, Fernandes [1] usa-o implicita e explicitamente para reivindicar a respectiva consagração final em... acta, fazendo dela, constatação [dela e de toda a série de maquinações legislativas e especificamente políticas que lhe foram continuamente subjazendo e que ele não ignora visto que as elenca e denuncia] admissão implícita das respectivas "legitimidade" e "bondade" sociais e políticas, não achando, todavia, aparentemente [2] que isto seja, apenas e só, na in/essência, ideologia e que, portanto, faça do texto constitucional onde, espero eu que não venha eventualmente a ser consagrado [3] um programa de governo habilmente «constitucionalizado» que é, no entanto, tara ou vício que ele não se coíbe expressamente de imputar à actual Constituição da República [ainda? Apesar de tudo?] em vigor...
A questão não é, pois, a de saber se há, "oui ou non", Estado Social em Portugal, hoje: a questão é a de, não sendo honestamente possível dizer que ainda há [só parecem, aliás, acreditar nisso os "pê-ésses" mas esses, como é sabido, se há aspecto em que se distingam não é decididamente pelo da honestidade intelectual e política dos respectivos posicionamentos de um modo geral, portanto não contam...]; a questão, dizia, é a de, sabendo isso, "que fazer?", como titularia Lenine, ou seja: aceitar a "fatalidade" e a suposta inevitabilidade histórica, social e política dos factos, dando-os por legitimados por uma qualquer versão monstruosamente política do usucapião imobiliário ou, exactamente ao contrário, investir o respectivo conhecimento num projecto político de ressaneamento e correcção do que apenas pode ser visto como um profundo desvio relativamente aos valores do humanismo e da solidariedade---correcção essa que permita, se assim me posso exprimir, repor a História no "lugar [e no Tempo, no "Tempo Civilizacional"] certos"...
"Lugar certo", disse eu?
"Lugar certo", disse eu?
Pois. Ideologicamente certo porque é disso---disso, de ideologia---que aqui se trata e não de qualquer História e/ou Política supostamente "naturais" para as quais tenda---lá está!!---natural [e ainda menos irreversivelmente] a realidade.
A História inventa-se: não se descobre---e isso é ideologia e é isso a ideologia.
A História inventa-se: não se descobre---e isso é ideologia e é isso a ideologia.
Ora, ninguém diz que é mau ter uma ideologia; pelo contrário, é até um bem e um bem, aliás, bem raro entre nós, hoje-por-hoje.
Agora, não se pode é honestamente pretender que a realidade é uma... "rua de sentido único" i.e. uma entidade "unidimensional", como diria Marcuse que o mesmo é dizer: não se pode confundir uma ideologia com uma "ciência" [pode-se, é verdade, gerar a partir da ideologia, uma 'ciencialidade objectual' que presida à sua aplicação prática---económica, social e, claro, política---mas essa é claramente toda uma outra questão...] e muito menos se pode confundi-la, à ideologia, com uma inevitabilidade e/ou uma fatalidade históricas e políticas e uma espécie de "destino natural único e definitivo" para a História: até Fukuyama que teve, um dia, a veleidade de pensar ter descoberto um termo natural para esta última se viu, pouco tempo depois, obrigado a admitir publicamente ter-se precipitado---e redondamente equivocado...
É na prática o que dá confundir ideologia com um conhecimento exacto, arrumando-a, de forma completamente espúria, disfuncional e ilegítima, entre as ciências naturais e dando, de passo, de barato que as formulações ideológicas constituem per se [em especial se forem as nossas, claro...] retratos de corpo inteiro de uma realidade a partir daí, pois, ou proibida "por lei" de transformar-se ou---democraticamente mais grave ainda!---insusceptível de permitir formulações distintas, afinal, tão argumentáveis e, por isso, tão estrutural e intrinsecamente legítimas como a nossa própria...
Já agora: não seria altura de os defensores do Estado [e da "democracia"] funcionais; daquilo a que chamo o "Estado broker" ou "Estado... almocreve" atentarem séria, honestamente, naquilo que se passa com os famosos "cheques-dentista" sistematicamente recusados por estes últimos por incumprimento por parte do Estado: estão a imaginar o que que seria e como seria um sistema de Saúde [ou de Educação ou de Justiça] assente em bases semelhantes, como advoga o indescritível Passos Coelho?...
Até a globalmente "liberal" América, bem ou mal, já percebeu a inimaginável desumanidade estrutural que está na base, que está "nos genes", daquilo.
É caso para dizer que o Portugal dos Soares, dos Cavacos e dos respectivos "sidekicks" ou "miniaturas em plástico" [os Sócrates, os Passos Coelhos e quejandos] também uma vez por outra se encontra com "os outros lá de fora": só que tem é o azar de fazê-lo quase sempre quando estes vêm para cá e "nós" ainda estamos alegremente ["sans blague"...] a ir "para lá"...
[Na imagem: Francisco Lucientes Goya, "Qué Viene El Coco!"/"Vem Aí O Papão!", da série "Caprichos"]
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