domingo, 5 de abril de 2009

"Tess" de Roman Polanski

Começo por me confessar: nunca fui... polanskista.
A obra do autor de "Pardon Me But Your Teeth Are On My Neck" (como a de Spielberg, por exemplo) sempre me deixou, com efeito, ou pura e simplesmente indiferente ou, em alguns casos até, invariavelmente irritado com os maneirismos de cada um deles, ou seja, com aquilo que, para alguns, é, afinal, o "estilo" distintivo de cada um deles.

Quando, por esse motivo, comecei a ver "Tess" de Polanski, esperava (até pela duração algo... faraónica anunciada do filme) a habitual estopada carregada com os tiques característicos do (para mim, geralmente intragável) formalismo do autor de "Repulsion".

Declaro-me, desde já, "convertido"--se não a Polanski, a "Tess", seguramente!

"Tess" é o "Barry Lyndon" do realizador polaco: um filme belíssimo com uma actriz fabulosa que lhe "rouba", aliás, grande parte do encanto da obra.

"Gaslight" de George Cukor [Ingrid Bergman]

"Under Capricorn" de Alfred Hitchcock [Ingrid Bergman]

Kinski, com efeito, com um rosto por vezes inquietantemente ("spookily"...) "bergmaniano" (há planos do seu rosto onde é impossível não re/ver o "fantasma" da belíssima Ingrid Bergman.
Da Ingrid Bergman de "Under Capricorn" de Hitchcock ou "Gaslight" de Cukor, seguramente.
Mas o filme de Polanski é, também (como o romance original de Hardy, aliás) um estudo interessantíssimo sobre o declínio histórico (social e político) da aristocracia, neste caso inglesa, completamente incapaz de acompanhar a contínua e acelerada complexificação tecnológica do mundo consecutivo à Revolução Industrial, ela mesma, aliás, "presente" no filme através da desajeitada e deselegante, descomunal, assustadora, maquinaria agrícola da época.
Neste sentido, o filme (como o livro, aliás, volto a dizer) "retoma", de resto, com uma subtileza e até um humour invulgares, aquele que é, no fundo, o motivo (e a inquietação cultu(r)al!) de Maria Edgeworth, no seu belíssimo "Castle Reckrent", um dos mais interessantes e característicos exemplos de obra literária centrada nesta espécie de socialmente dolorosa "esquina civilizacional" da História que foi o parto da modernidade, aí, ao longo de todo o século XIX, situado.
A errância dos d' Urbervilles reconstituida no filme tem muito de discreta (e até grotescamente trágico e, simultaneamente, épico); algo de remotamente tolstoiano, ecoante designadamente da "Guerra e Paz", localizada esta, aliás, temporalmente, como se sabe, no período de onde, no fundo e em última instância, se originou a própria Revolução Industrial inglesa: a Revolução Francesa de onde, por sua vez, viria a emergir, triunfante, a burguesia que há-de ou, pura e simplesmente, "devorar" e substituir ao "volante da História" ou, em muitos casos, "integrar" e "engolir" em si a aristocracia entrada em acelerada queda económica, social, tecnológica, política e civilizacional.
O humour de "Tess" está, desde logo, no modo como os autores do livro e do filme, Thomas Hardy e Roman Polanski na sequência deste, escolheram representar nas suas respectivas obras essa mesma aristocracia: na figura de uma família económica e socialmente decadente, ignorante e ignorante do seu passado (privada de qualquer memória directa deste), liderada por um pai alcoólico a quem a cupidez e a súbita (mas bronca, míope, desoladoramente mesquinha!) obsessão com a fortuna faz com que tenha lugar a "venda" (e, no fundo, toda a tragédia dela decorrente) da bela Tess d' Urbervilles.
Na escolha da actriz que lhe dá corpo e rosto (voltando agora, muito merecidamente aliás, a ela) Polanski revelou, de facto, uma intuição ou uma percepção assinaláveis: Kinski é, ao longo de todo o filme, um espantoso "estudo" vivo sobre a pureza e a inocência, sucessivamente revelada e perdida, imolada a um mundo sem piedade onde só a riqueza, subitamente em processo de (convulsíssima) redistribuição histórica, conta.
Na arquitectura narrativa do filme, há, a meu ver, apenas uma falha--embora algo notória e pesada, digamos assim: a que envolve a (falta de real) motivação de Tess para matar o amante.
Deixá-lo, conforme o filme se desenrola, com certeza.
Mas matá-lo parece, no contexto, de facto, francamente deslocado e forçado.
Mas, volto a dizer, o filme recria com particular eficácia essa inquietante impressão, muito difusa de brumosa desfixação, de resignada errância e dolorosíssimo desenraizamento que constitui, no fundo, a expressão narrativa do próprio desenraizamento e da errância da aristocracia, perdida por momentos da História mas também e de algum modo, sobretudo, nela.
Circunstância que um uso muito amplo da câmara (e do próprio espaço--da vasta, aberta, espacialidade--do grande écrã)--a esparsa, embaciada horizontalidade, as largas pinceladas da câmara de Polanski--exprimem com assinalável brio e mesmo, como disse, de um modo geral, com inegável brilho.

2 comentários:

Gonçalo disse...

De facto a Ingrid Bergman era uma mulher lindíssima como a Liz Taylor ou a Jane Russel,mas muito melhor actriz que elas.Na minha modesta opinião claro.

Carlos Machado Acabado disse...

Era, sim senhor!
E tinha um rosto fabuloso de trágica expressividade que realizadores como Hitchcock (que fez "Under Capricorn" a pedido dela e que odiou o seu próprio filme...) ou Cukor (num sinistro e muito 'freudiano' "Gaslight") entre muitos outros exemplos, tiraram todo o partido possível.
Curiosamente, houve uma Bergman italiana: Silvana Mangano, ela própria senhora de um rosto incrivelmente expressivo que a dispensava, em última análise, de "representar"...