Uma das mais marcantes características de Clint Eastwood foi, sem dúvida, desde sempre, a sua inegável (dupla!) capacidade para "renascer" e para surpreender pelas mais diversas razões, de um modo ou de outro associadas a cada uma dessas marcantes, quase sempre desconcertantes... "reencarnações".
Designadamente depois da polémica envolvendo os famigerados "Dirty Harry", Eastwood--que havia, como se sabe, feito um (geralmente "complicado" e sempre muito problemático) percurso da televisão para o grande écrã--pareceu definitivamente condenado à irregressível insignificância, desde logo, pelo estatuto de "maldito" que, entre os críticos, rapidamente logrou assegurar para a sua (cinematograficamente por vários motivos invulgaríssima) pessoa.
A verdade, porém, é que Eastwood (que, depois de dado o passo decisivo que o levou do universo menor das séries televisivas para o cinema--o cinema visionário e caracteristicamente excessivo, idiossincrático, de Leone) surpreendera, no seu regresso vitorioso aos "States" pela violência e pela eticamente--no mínimo...--ambígua e, aliás, já algo... "europeizada" qualidade de alguns dos seus mais conhecidos filmes de então--sempre, de uma maneira ou de outra, centrados em torno da "ideia", de algum modo, muito americana--embora com ela diversos realizadores italianos, designadamente Leone, tenham ajudado a, em alguma medida, 'refazer' o próprio cinema europeu--de que entre a «razão da acção» e a «acção da razão» a opção dos Homens "verdadeiramente grandes" está "naturalmente" feita e vai sempre pela primeira destas hipóteses--trata-se de uma velha obsessão envolvendo, por exemplo e caracteristicamente, o termo "politics" recontextualizado numa "semântica cultu(r)al" muito própria que o coloca definitivamente entre as piores "four letter words" conhecidas, por oposição a um não menos velho e não menos caracteristicamente americano, desembaraçado, "frontier spirit", consagrado, aliás, por este mesmo Eastwood depois de o ter sido--por exemplo talvez máximo--pelo "gigantesco" e "tutelar" John Wayne); a verdade, porém, dizia, é que o brutal Harry Calaghan (ficaria famoso pelo repugnante "make my day!", eco exponenciado do comparativamente mais discreto "Go ahead! I wish you did!" (1) de Wayne em "Rio Bravo" de Hawks) nos reservaria ainda enormes surpresas, uma vez passado para trás da câmara de filmar.
Nessa altura, com efeito, um novo Eastwood (res) surgiria completamente metamorfoseado das cinzas do anterior: um homem com preocupações de natureza não apenas (surpresa!) estética--é verdade que o cinema onde ele terá feito grande parte do seu tirocínio como realizador, o de Sergio Leone, era um cinema apenas aparentemente 'despreocupado' em termos da sua--muito pelo contrário!--sofisticadíssima, barroca, por vezes, mesmo abertamente operática, "arquitectura narracional" mas (surpresa maior ainda!) ética; um homem com uma visão de tolerância e humanismo e um artista com um domínio supreendentemente refrescante, amadurecido e completamente inesperado, do "tempo" ou dos tempos da narratividade, algo que distingue, afinal, os grandes contadores de histórias, independentemente do meio de que se servem para contá-las.
Este invulgaríssimo "Midnight In The Garden of Good And Evil" integra-se (é mesmo essa uma das suas grandes qualidades!) nesse espírito de amadurecida tolerância e, ao mesmo tempo, de esclarecido, subtilíssimo, domínio da mecânica específica da narrativa que Eastwood virá, depois, como é sabido, a sublimar em obras absolutamente definitivas como "The Unforgiven", "Million-Dollar Baby" ou (sobretudo) "Letters From Iwo Jima".
Arrebata, empolga mesmo, o modo como Eastwood se decide aaqui a arriscar tudo num tema particularmente... "íngreme" e reconhecidamente ingrato como o da homossexualidadeousadamente "sobreposto", aliás, a outro não menos... "complicado" envolvendo a questão da "negritude" no Sul dos E.U.A.--conseguindo, porém, sempre evitar, através de uma concepção soberbamente contida e assinalavelmente sóbria da narrativa, a armadilha, por um lado, da retórica e do "óbvio" e, por outro, do "exotismo" ou mesmo do "freak show", mérito esse que partilha, de resto, com um elenco absolutamente notável, solidíssimo, onde avulta esse perturbador (ou essa perturbadora?) figura que é "Lady Chablis" (uma espécie de "eco" involuntário, físico e não só, do escritor negro James Baldwin) bem suportada, aliás, por um eficacíssimo John Cusack, "todo um actor" com o grande mérito de quase nunca "se dar por isso", se me é permitida a expressão...
Do filme em si pode dizer-se que ele... são várias coisas, todas elas interessantes e todas dignas de particular consideração: é, por exemplo, um "courtroom flick", um estudo sobre rostos e sobre o modo eficaz de arrancar deles instantes e expressões: esteticamente, quando bem encenado e cinematograficamente bem tratado, um "jogo" sempre fascinante (como muito sabiamente descobriram homens como Billy Wilder, Otto Preminger ou Sidney Lumet).
É também, voltando a Eastwood e ao seu "Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal", um (subtilíssimo!) filme sobre aspectos particularmente significativos e relevantes dos mecanismos de manipulação dos grupos humanos mas, sobretudo, sempre muito discreta e muito subtilmente, sobre o modo como, na vida, se consolida e, em última instância, "fundamenta" aquilo a que convencionámos chamar "verdade".
Pior ainda: A 'Verdade'.
É, designadamente, um filme (esclarecidíssimo!) sobre as cautelas a ter com essa "fundamentação" e, em geral, com o modo como chegamos a essa 'verdade'.
Sobre os limites inevitáveis e naturais dela.
Notável é, sobretudo, a discrição e a subtileza como o motivo é tratado no filme: sempre, diria eu, muito habilmente "embrulhado" no próprio... "tecido narrativo", isto é, sempre sem recurso a intrusivos discursos teóricos ou a outra qualquer forma, imediatamente reconhecível, de retórica.
Mais hábil (e respeitável!) ainda, é modo como o realizador Eastwood "encaixa" nesta base o motivo extremamente espinhoso da homossexualidade: de facto, é especificamente através dele que Eastwood chega à ideia da necessidade de ser particularmente prudente nos julgamentos que fazemos sobre as pessoas e sobre os factos a ela associados.
Sobre o direito de cada um à diferença--sobre o direito de cada um à dignidade--e a ser julgado, de facto, por aquilo que, independentemente da garantia do direito a esse... direito, são os actos em si de cada indivíduo: de cada ser humano.
Caracteristicamente, o argumento "resolve" completamente a "questão" da homossexulidade do réu, separando claramente essa questão da outra, da do crime, nunca deixando (até pela valorizaão que faz da Pessoa de "Lady Chablis" e do seu contributo para a resolução do "caso".
(1) Profere a frase em causa a persongem do sheriff John T. Chance a um inimigo que tenta surpreendê-lo apoderando-se sorrateiramente de uma arma a fim de atingi-lo à traição.
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