quarta-feira, 8 de abril de 2009

"De bola... pirada-1"

Nem de propósito!
Logo a seguir à 'entrada' que dedico à sua reflexão sobre a "justiça dos penalties" no futebol, o "Record", porque é quarta-feira, ataca hoje com nova crónica do Dr. Saraiva.

Pois...

Desta vez, discorre o severo Dr. Saraiva (sob o "epustuflante" título de "O Virus Mortal", aliás: o "virus mortal" com minúsculas--titular com minúscula parece ter-se tornado uma espécie de "must" mediático pós-moderno literalmente omnipresente) sobre o uso dos chamados "meios tecnológicos" no futebol, como se sabe, o tema eleito pela cadeia de televisão SIC para melhor "vender" o seu próprio "produto mediático" mais recente, o comentador (não comendador--não ainda...) Rui Santos.

Pois o Dr. Saraiva é contra.

Diz ele (argumenta ele) a propósito duas coisas: primeira coisa, que "o futebol [se] impõe", segundo ele, Dr. Saraiva, "pela sua simplicidade" e que "bastam 11 jogadores de cada lado, uma bola, balizas e um árbitro para o jogo ter lugar" e ainda que começar a "complicar o futebol" é começar a "matá-lo".
E termina solenemente: "Quando as decisões começarem a depender de sensores, de câmaras de televisão, de chips, etc. estará instalado no futebol um virus mortal!

Nem mais nem menos: um "virus mortal"!

Ora, aqui, eu permitir-me-ia corrigir um tudo-nada a aserção do Dr. Saraiva e diria antes: o futebol impôs-se com uma certa forma e um certo paradigma de "relacionalidade"global, digamos assim, não tanto pela sua simplicidade mas, sobretudo, por uma espécie de cultura de respeito natural (talvez mesmo: de respeito instintivo) pelo papel verdadeiramente angular e determinante do juiz, consolidado, diria eu também, em especial a partir do momento em que o "sport" e, especificamente o "football", passou a ser um instrumento essencial de socialização nas "public schools" britânicas.

Neste contexto, a figura do "ref", do "referee" ocupa um lugar (vamos dizer deste modo: muito... "britanicamente inquestionável", algo que se nota ainda, muito claramente, no primitivo futebol português.

Há testemunhos que o confirmam.

Recordo-me, por exemplo, de um jogador ter sido expulso num deses jogos "arqueológicos" realizados entre nós, salvo erro pelo seu próprio "capitão" de equipa, por ter sido indelicado questionando uma decisão do árbitro--um facto reportado pela popular "Ilustração Portuguesa".

Ainda hoje, em Inglaterra, o "ref" goza genericamente de uma autoridade que, por exemplo, entre nós já se perdeu de todo.

Vou fazer aqui uma breve pausa na abordagem deste primeiro aspecto e passar imediatamente ao segundo, isto é, à segunda coisa argumentada pelo Dr. Saraiva para discordar (para 'ser contra', diz ele) o uso dos tais "meios" no futebol.

Diz ele e dizem muitos outros comentadores que o uso em causa configura uma injustiça (lá voltamos nós à magna questão da "justiça" do desporto e na competição...) porque apenas os jogos televisionados, por exemplo, permitem que uma espécie de arbitragem a posteriori faça secundariamente a justiça que não possível fazer in loco e em tempo real.

Ora, com todo o respeito pelo Dr. Saraiva e pelos outros comentadores que com ele partilham este ponto de vista ser contra o uso dos meios tecnológicos no futebol é como ser conta os supermercados em defesa das mercearias de bairro ou contra os aviões tomando o partido das carroças e dos trens...
A gente pode não gostar de aviões e ter uma simpatia "bestial" pelo Sr. Silva da mercearia lá do bairro.

Poder... pode--só que... só que não é materialmente possível, desde logo, manter hoje instituições e, de uma forma mais geral, mais lata, todo um quadro de hábitos e modos de ser e estar que há quarenta/cinquenta anos ditavam, por exemplo, que os homens trabalhassem e as mulheres ficassem em casa a cuidar dos filhos e a ter, por conseguinte, a possibilidade de "irem às compras" a uma certa hora adquirindo, de passo, produtos que tinham, por sua vez, um certo preço porque emergiam de um quadro produtivo específico, contextual, que conduzia mais ou menos directa e até mais ou menos... 'naturalmente' até ele.

Hoje, porém, homens e mulheres trabalham (vão trabalhando enquanto as multinacionais não se deslocalizam todas para o ex-Leste e os "patriotas" empresários locais, como lhes chama o Dr. Júdice, não despedem mais uma boa mão-cheia aproveitando a "generosa" boleia da "crise"...) e têm de fazer as suas compras a horas que há meio século seriam literalmente impensáveis; o quadro producional agigantou-se e modificou-se de tal forma que o Sr. Silva, os muitos Srs. Silvas que há meio século povoavam as Ruas Palmiras de cada bairro/vila dessa saudosa Lisboa pós-rural deixaram naturalmente de dar-lhe resposta; por outro lado ainda, a própria... "volução" natural dos padrões de consumo acabaram por fazer com que hoje seja um critério de aquisição, a embalagem, o ambiente, a concentração da própria oferta, o preço, claro, ecoando o próprio crescimento dos valores de produção e por aí fora.

De tal modo que tentar hoje impor nesa maior cidade do País que é, como se sabe, a Subúrbia, uma mercearia exactamente como a do Sr. Silva de há cinquenta anos, só mesmo por capricho, por saudosismo, um pouco por piedade pelos Srs. Silvas e pelos filhinhos que eles tem lá em casa para sustentar e/ou por lei.

Ou seja: a mercearia do Sr. Silva é, hoje-por-hoje, um anacronismo cultu(r)al, um corpo estranho institucional e... ponto final.

E o mesmo se passa com o avião e a carroça--ou o trem: são giros?

Ternurentos?

São.

Serão.

Mas alguém está a ver o "jovem empresário" de telemóvel em riste a preferir já nem digo o avião mas, no mínimo, o carrinho (maior que o do vizinho, se faz favor!) ao trem, para chegar da sua gloriosa Subúrbia à cidade onde trabalha?

A questão é: tudo isso, o trem, o Sr. Silva, a sua merceariazinha de bairro, as postas de bacalhau demolhado vendidas avulso, a manteiga em papel vegetal, etc. etc. as lojecas humanizadas onde se ficava a dever, onde o Sr. Silva punha água no leite e batizava o vinho e onde toda a gente se conhecia e conversava enquanto escolhia os nabos e mandava pesar os grelos é muito giro e faz a muitos de nós incríveis saudades mas não passará seriamente pela cabeça de ninguém que é realmente possível interromper espontaneamente o curso da realidade e, goste-se ou não daquilo a que deu lugar a loja do Sr. Silva, reintroduzir nela, realidade, aquilo que ela teve "lá dentro" naturalmente há não-sei-quantos anos.

É por isso que a mim pessoalmente me soa a ridículo o afã da SIC em "advogar" uma coisa que apenas os tolos negam (que também a História tem, como diria Pascal, " razões que a própria razão desconhece) e que não é, pura e simplesmente, possível hoje, na expressão genial de um título célebre "stop the History because some of us want to get off"...

A questão não se põe, pois, em termos de saber se "concordamos ou não" com a introdução dos tais meios, agora também na competição: a questão é a de perceber aquilo que a realidde naturalmente exige.

A questão é a de só os tontos pretenderem que a História se pode (como faziam aqueles meninos que eram os "donos da bola" quando os outros marcavam golos contra eles) "meter no bolso e levá-la para casa" quando nos apetece ou quando nos parece...´

Ponto um.

Depois, há a tal questão da cultura de (des) respeito pelo árbitro.

Sucede que em Portugal, hoje, ela não existe.

Recordo-me de um cirurgião famoso que defendia, entre nós, ainda não há muito tempo, que chamar "ladrão" ou "filho da p." ao árbitro não era ofensa nenhuma (era simplesmnte... "futebolês") assim como, de resto, que "arrefinfar" uma valente cacetada de vez em quando num companheiro de trabalho vestido circunstancialmente com uma roupa, um equipamento, diferente era perfeitamente defensável se fosse dada, dizia ele com o ar mais sério deste mundo... "no calor da luta"...

Ora, não havendo, pois, cultura de respeito pelo juiz (nem sequer pelos companheiros de profissão, quanto mais pelo juiz); estando, de uma maneira geral, a competição, entre nós, completamente desacreditada, menos ainda a questão da "mediação ou arbitragem electrónica" se põe.

É uma questão de "cultura" latu sensu.

Não há escolha: é uma imposição da própria realidade e não há volta a dar-lhe.

Aliás, o outro argumento apresentado pelo Dr. Saraiva não faz mais sentido do que tudo quanto já disse: aceitar que é "injusto" punir faltosos porque outros que não são televisionados ficam impunes é como aceitar que um polícia que vê alguém roubar não actue porque "há tantos gatunos à solta que não são apanhados!" ou achar normal que um juiz mande um assassino para casa porque não consegue detectá-los todos e castigá-los a todos.

Quero dizer: já não digo o Sócrates (porque a minha Mãe não me deixa dizer palavrões...) mas Zenão de Eleia, o sofista das aporias, acharia seguramente todos estes argumentos impecavelmente coerentes.

O azar é que o bom do Zenão já morreu há para aí vinte/trinta séculos...


P.S. A juntar a quanto já disse diria ainda: um certo "argumentativamente correcto" muito comum mantém, ainda hoje, tantos anos volvidos sobre a implantação do profisionalismo, que não há fiferenças de fundo entre este e o amadorismo em matéria de valores.
De valores expressos em asserções do tipo: "o que importa não é vencer, é competir"; "ganhar ou perder, tudo é desporto" e por aí fora.
Ora, a verdade é que nada disto faz o mínimo sentido hoje em dia na chamada "alta competição". Perder, quando se fizeram investimentos de milhões está muuuuito longe de ser "o mesmo que" ganhar.
O que isto significa na prática tendo em vista a questão que aqui trato é que a questão dos meios tecnológicos (que, volto a dizer, não é questão: é praticamente inevitabilidade!) não tem necessariamente de pôr-se para todos os escalões da competição, pelo menos numa primeira fase: é nos escalões profissionais (isto é, naqueles onde 'está o dinheiro') que a questão se põe com carácter de mais extrema relevância e, por conseguinte, até de urgência--e mais do que urgência: naturalidade, digamos assim.
Não é, obviamente, que não importe desfazer dúvidas nos restantes escalões: campeonatos regionais, das camadas jovens. etc.
Não tem é, numa sociedade onde o dinheiro não abunda como a nossa, de configurar uma medida a implementar com idêntica urgência, de forma universal--e imediata--considerar-se que a implementação da tecnologia deve ser na prática excluida por razões de uma suposta "justiça universal".
Eu diria que o erro faz parte do Desporto, mas custa dinheiro na Competição: a diferença, no imediato e, de algum modo, na esência, é essa.
É, por outro lado, uma mistificação dizer-se que fica muito cara a implementação de alguma tecnologia essencial.
Fica caro, como é evidente mas relvar obrigatoriamente os estádios também ficou (e fica!) e no entanto é hoje completamente impensável que, a nível profissional, se jogue em campos 'pelados'.
De resto, esta questão pode nem sequer ser, de facto, um problema--pelo contrário, até.
Se, com efeito, dizemos com frequência que a competição--o panorama competitivo, genericamente considerado--se encontra, entre nós, substancialmente inflacionado de clubes (são muitos os que começam logo por dever, mais ou menos regularmente, aos seus praticantes, por exemplo--e exemplo máximo!) é até possivelmente um meio de triar lógica e justamente aqueles que são de facto auto-sustentáveis--esse de aferir a sustentabilidade exactamente pelo modo como são capazes de modernizar-se num conjunto de domínios que são, no fundo, básicos, fundamentais.
É, pois, um erro partir do dinheiro que os clubes (não!) têm para a definição das medidas implementáveis, independentemente de estas serem julgadas essenciais ou não.
O caminho tem de ser precisamente o inverso, isto é: começar-se pela definição das medidas entendidas como essenciais e partir-se, em seguida, para a verificação ou melhor: para a triagem efectiva dos clubes capazes de sobreviverem a nível profissional.
Mais: a tecnologia a implementar no desportismo profissional, no fundo, não diferirá muito da que é já hoje usada para identificar ceros animais domésticos: o chip electrónico capaz de aferir da correcção do posicionamento dos jogadores e da bola no campo.
Não creio, por exemplo, que a posssibilidade de recurso ao chamado "replay" possa resolver problemas de fundo.
Porquê?
Primeiro, porque pode (se a possibilidade de requerer o visionamento de imagens gravadas for ilimitada) ser um recurso usado para, por exemplo, "queimar tempo" ou "cortar o ritmo" de um adversário, em lugar das faltas chamadas "cirúrgicas" ou de qualquer outro dos inúmeros expedintes hoje conhecidos (e usados) com esse propósito.
Pode até este vir a ter um efeito perverso, juntando-se aos que já existem.
É, por exemplo, possível que um equipa à qual interesse queimar tempo ou cortar o ritmo de jogo ao adversário requeira sucessivas repetições a fim de "assegurar-se" da correcção de decisões arbitrais...
Porque o mal não está na dúvida: está na mentalidade, na cultura competitiva do jogador portugês, incentivado no sentido do expediente desleal (senão mesmo abertamente desonesto!) por dirigentes mal formados e eles msmos frequentemente desonestos.
Por outro lado, se houver limitações ao úmero de "replays", é sempre possível (de facto, é previsível!) que os vencidos (certos vencidos, pelo menos!...) recorram exactamente à impossibilidade de ver certos lances repetidos para argumentarem que houve uma "gestão" intencionalmente malévola dos "replays", tendo ficado "premeditadamente" de fora deles os lances em que o árbitro pôde já prejudicá-los e à sua equipa.
Ou seja: que esse mesmo árbitro guardou para a fase em que já não se podia requerer a repetição para prejudicar deliberadamene esta ou aquela equipa...


[Na imagem: busto de Zenão de Eleia]

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