quinta-feira, 9 de abril de 2009

"Tanatopia ou pensamento tanatópico" [ainda não completamente terminado]


O meu amigo Armando Nascimento Rosa expõe, no posfácio da sua peça "O Eunuco de Inês de Castro", a sua tese da existência de um "complexo de Inês", ao lado do "Édipo" e da "Electra" freudianos.

Confesso, desde já, que a ideia me fascina...

Vou mesmo um pouco mais longe para afirmar que existe, de facto, a meu ver, um demonstrável pensar... "tanatópico" português estavelmente instalado na subconsciência colectiva nacional, representação cultu(r)al estável essa naturalmente decorrente do próprio modo particular concreto como a "portugalidade" fez, ao longo da sua existência material, uso específico da (sua própria) História, digamos assim.

Ou seja: a minha tese é que, após o "essor" fulgurante dos séculos XV e XVI, o País viria (em larga medida como resultado directo do modo como geriu objectivamente o sucesso técnico/tecnológico-comercial-social-político-civilizacional, aliás: é do mais elementar rigor e da mais elementar ustiça que se diga) entrar numa espiral de acelerada decadência a todos esses níveis e, especificamente, em termos de relevância geo-política e geoestratégica que chegou a ter nunca mais se terá nem de longe (longe disso!...) voltado a repetir.

Aquilo que eu defendo é, pois, concretamente que o brevíssimo "instante histórico" de fulgor geopolítico português passou, desde que efectivamente teve lugar, a operar (a nível das elites como, de algum modo... ecoante e secundário, num plano mais difuso, no seio do povo ou das massas) como a bitola de referencialidade pura, absoluta, fixa e incontornável da própria relevância nacional como tal, daí decorrendo que tudo quanto se lhe seguiu, quer no âmbito da realidade interna, quer no da externa, passou a ser naturalmente visto (e, sobretudo, sentido) como figurando sempre, de um modo ou de outro, perda e decadência.

Articulado no inconsciente colectivo da «portugalidade paradigmática» ou arquetipal com esta percepção (chamemos-lhe assim: de um modo ou de outro, fundadora de si próprio--de uma imagem ou mesmo, num plano mais alargado, de uma imagética distintiva estável de si próprio, seguramente) consolidam-se naquela subconsciência colectiva nacional as múltiplas formas de representação dessa imagem ou dessa imagética (sempre consistentemente reportadas, uma e outra, aos próprio núcleo dos mecanismos de construção de si mesma) de todo um conjunto de "reformulações significadas" (eu diria: de re/formulações concêntricas") do 'motivo' do "paraíso perdido"--'motivo' esse, cujo impacto subjectivo ou subjeccional específico vem (de forma perfeitamente natural, aliás!) regularmente potenciado pela assimilação colectiva concomitante daquele que é o modo judaico-cristão característico de representar teoricamente a relação típica--a relacionalidade de episteme--entre a "matéria" e o "espírito" ou entre a "carne" e a "alma": ou seja como uma oposição tensional ou tensionada sempre, eternamente, irresolúvel em si mesma.

Sucede adicionalmente e, por outro lado, que, por razões históricas concretas, particulares, que são, a um tempo, causa e efeito, a decadência nacional esteve sempre, de um modo ou de outro, directamente relacionada com uma certa visão inorgânica e tendencialmente imaterial ("imaterilizante" ou mesmo abertamente "desmaterializante") da "nacionalidade", se assim me posso exprimir.

Isto é: convencido da própria fatalidade 'natural' da decadência, encorajado por todo um motivário particular oriundo da tradição judaico-cristã envolvendo a ideia de uma ciclicidade básica da "Vida" centrada numa espécie de estruturação triangular da própria realidade em geral assente, por seu turno, nos 'motivos' fundadores da "queda", da "expiação" e do "reencontro meta-físico da Alma com a Essência pré-material mesma do mundo", ciclo este rodando, sempre, verticialmente em torno da ideia-charneira da "Morte"; solidamente instigada a persudir-se disso, dizia, a portugalidade cultu(r)almente paradigmática encontra, a breve trecho, secundariamente, na ideia da morte a própria chave da felicidade existencial ou cultu(r)al ideal, perfeita, definitiva, digamos assim.

Essa recuperação triunfal da Morte impede-o de sofrer cultu(r)almente com a decadência fortemente interiorizada e consolidada no inconsciente individual e colectivo: na realidade, ela é secundariamente re/valorizada como a "expiação" (a tal expiação!) indispensável ao renascer meta-físico triunfal final.

Este, situado assim, confortavelmente fora da realidade material (a carne "é fraca" e impede o "espírito", obstaculiza-o, embaraça-o, diz a tradição judaico-cristã); aquele, dizia, "atirado", assim, providencialmente para fora da realidade material fornece, diria eu, um contributo capital para a justificação "teórica" da rejeição da acção histórica concreta, efectiva, na medida em que está em todo este processo subjacente a ideia de que não vale a pena resistir à necessidade de "expiar" (pelo contrário: é preciso é aceitá-la docilmente porque ela traz consigo uma componente mais ou menos iniciática ou iniciatizante redentora, purificadora, essencial que há é que cumprir para se ganhar, no fim, pois, a "salvação").

Mais: consolidado este modo cada vez mais reconhecivelmente "identitarizador" de perceber a ir/realidade da História, sempre que aquela necessidade de agir ameaça surgir, mais intenso tende a tornar-se, de forma naturalmente inversional, o culto da Morte que vem sempre legitimar ulteriormente a própria in-acção como tal--e, num certo sentido genérico, difuso típico, como vimos, a dado passo, já como um "valor" em si.

A dado passo, a Morte passa, pois, de 'porta de entrada' mais ou menos circunstancial ou circunstante no (para o) "absoluto" e para a felicidade perfeita a condição e pressuposto naturais incontornáveis dessa mesma felicidade.

Ora é aqui, diria eu, que se entra, na própria essência do pensar tanatópico como tal.

Vejamos: é preciso, então, morrer para se ser feliz?

Isso era ao princípio: agora, é preciso morrer para se ser.

É também aqui que eu inscrevo, a meu ver: naturalmente, os "mitos" de Inês de Castro e o próprio sebastianismo.

Ou mais exactamente: de Inês de Castro como modulação ou como variante (como variante... "alotrópica") do pensar sebastiânico básico e característico.

No limite, admito que o "complexo de Inês" não exista fora deste quadro teorérico geral que traz o motivário edénico e ressureccional para o concreto da História e o concretiza (ou concretua, se me é permitido que crie um palavrão possivelmente necessário); o concretiza ou concretua, pois, paradigmaticamente, dizia, no sebastianismo.

O sebastianismo, porque configura uma espécie de modelo idealmente bipolar ou bifocal de representação cultu(r)al da realidade que é simultaneamente distanciador (lá está, ainda e sempre, a tal ideia cultu(r)almente obsessional de justificar permanentemente a in-acção!) e aproximador: há nele, nesse ponto de fuga cosmovisional específico que é, na realidade, o sebastianismo, por outro lado, "História" (ou "historicidade") bastante para o ancorar quanto baste numa 'realidade' com a qual a tal portugalidade paradigmática se dá reconhecida e reconhecivelmente muito mal.

D. Sebastião (que começou por ser, como é sabido, um jovem impulsivo e irreflectido) (1) morreu (como o próprio Cristo) "para nos salvar" como País, como Pátria.

Morreu, no contexto particular do mitário, defendendo valores de expansão e consolidação da portugalidade.

O ter morrido e ter perdido o combate introduz no mitário o 'motivo' capital do sacrifício, isto é, potencia até um limite, sob inúmeros aspectos paroxístico, o 'motivo' iniciatizante essencial já referido da "expiação".

Figura e/ou representa simbologicamente os próprios limites ou limitações naturais da "carne", a sua fraqueza específica, ínsita, inerente--enquanto glorifica, por outro lado, a própria auto-mutilação/auto-negação como, no fundo, um "bem" e um "valor" condicionais de salvação.

O facto de a "carne" sofrer e morrer não significa necessariamente neste quadro algo indesejável e negativo: representa, pelo contrário, na sua forma limite, volto a dizer, um pressuposto incontornável de "ressurreição" e deve, nesse caso, ser festejado nessa condição ideal perfeita.

D. Sebastião, ao morrer fisicamente, pode, pois, já renascer, isento de máculas e fraquezas próprias da (sua mas não apenas da sua: de toda a) circunstancialidade material, corpórea, anterior sob forma incorpórea providencial, reencarnando em sucessivas personagens igualmente, de um modo ou de outro, salvadoras como ele.

Há muito de (mais do que óbvia!) analogia na aceitação fatal (na aceitação paradoxalmente desesperada e esperançosa) da Morte na imagem de D. Sebastião combatendo numa luta à partida condenada ao fracasso e da aceitação do "martírio significado" voluntário, providencial e sacrificial (sublinho: "sacrificial"!) por parte de Cristo.
De facto, a morte de D. Sebastião, vista sobretudo como ela é geralmente vista, i.e. em retrospecto, assume em diversos autores, muitos deles populares, a forma implícita mas não raro reconhecível do quase mero cumprimento de um ritual pré-estabelecido e pré-anunciado.
Pré-destinado.
D. Sebastião é, aliás, em si, uma figura muito propícia à acção mitificadora (no sentido preciso com que vejo esta última aqui) exactamente porque aquilo que está, efectivamente, em jogo nela e em torno dela--na base de tudo o que dela mitologicamente ou mitogenicamente deriva--é, como começa logo por deixar referido o próprio Camões n' "Os Lusíadas" (Cf. António Sérgio, "Camões Panfletário--Camões e D. Sebastião", edição Clássicos Sá da Costa, tomo IV das "Obras Completas de António Sérgio", reedição em opúsculo autónomo, Lx, Abril, de 1977) a oposição entre a acção e a in-acção históricas, de resto um eco, ainda e sempre, da "velha" oposição judaico-cristã entre corpo e alma, entre a "carne" e o "espírito", determinando um modo particular de (não!) estar no Tempo e na História.

Ora, também Inês de Castro entra em Portugal e no imaginário nacional como um elemento essencialmente perturbador: é (um) a estrangeira, torna-se numa mulher adúltera e ("last but not least") é, numa sociedade fortemente orientada para a recusa cultu(r)al da "carne" e do "corpo", uma ousada, irrecusável figuração material da sexualidade.
Isto é: desafia, a um tempo, um "País cultu(r)al" aterrado com o próprio corpo e um "País político" permanentemente atormentado pela sua pequenez física e política face ao exterior: a Castela.

Fisicamente, é, pois, insuportável, inintegrável. Já morta, porém, livra-se dessa mácula específica que nela dá existência material a uma "falha" que é ínsita à carnalidade genericamente considerada e ascende à coroação simbológica post-mortem que faz dela, isso sim, o ícone por excelência de "um certo" pensar tanatópico arquetipal português tal como eu o vejo, digamos assim.

Não por acaso, em "A Paixão de Pedro, o Cru", Afonso Lopes Vieira acaba aproximando-a, depois, de morta à imagem ela mesma icónica no imaginário colectivo (não só popular) da "Rainha Santa".

NOTAS

(1) Num texto que mais adiante refiro apresentando a respectiva identificação bibliográfica completa, Sérgio dedica-se à análise da áspera censura feita ao comportamento político do rei pelo épico, no canto nono.

(2) Repare-se, por exemplo, na dicotomia entre a necessidade e a renúncias ao sexo a propósito de D. Sebastião: enquanto que, por exemplo, Camões, n' "Os Lusíadas", no canto nono, lhe verbera a recusa irresponsável à sexualidade na forma de crítica à sua inaptidão ou falta de desejo para dar um herdeiro ao reino ("por seguir um feio animal fero/foge da gente e bela forma humana", num Frei Bernardo da Cruz ("Crónica del-Rei D. Sebastião", cap. 3, citado por António Sérgio: cf. António Sérgio op. cit. página 34) inicia-se já claramente a transfiguração do Rei no Símbolo Purificado: "A virtude que se enxergou em el-Rei D. Sebastião, e ele com muita instância pedia aos devotos religiosos alcançassem de Deus lha confirmasse, foi a pureza da castidade, que ele guardou até à morte com limpeza virginal; em cuja guarda foi tão zeloso e acautelado de toda a comunicação, e ainda da vista ou fala de mulher, que (...)".


[Na imagem: pormenor do túmulo de Inês de Castro, em Alcobaça]

Sem comentários: