
A obra do autor de "Pardon Me But Your Teeth Are On My Neck" (como a de Spielberg, por exemplo) sempre me deixou, com efeito, ou pura e simplesmente indiferente ou, em alguns casos até, invariavelmente irritado com os maneirismos de cada um deles, ou seja, com aquilo que, para alguns, é, afinal, o "estilo" distintivo de cada um deles.
Quando, por esse motivo, comecei a ver "Tess" de Polanski, esperava (até pela duração algo... faraónica anunciada do filme) a habitual estopada carregada com os tiques característicos do (para mim, geralmente intragável) formalismo do autor de "Repulsion".
Declaro-me, desde já, "convertido"--se não a Polanski, a "Tess", seguramente!
"Tess" é o "Barry Lyndon" do realizador polaco: um filme belíssimo com uma actriz fabulosa que lhe "rouba", aliás, grande parte do encanto da obra.


Kinski, com efeito, com um rosto por vezes inquietantemente ("spookily"...) "bergmaniano" (há planos do seu rosto onde é impossível não re/ver o "fantasma" da belíssima Ingrid Bergman.
Da Ingrid Bergman de "Under Capricorn" de Hitchcock ou "Gaslight" de Cukor, seguramente.
Mas o filme de Polanski é, também (como o romance original de Hardy, aliás) um estudo interessantíssimo sobre o declínio histórico (social e político) da aristocracia, neste caso inglesa, completamente incapaz de acompanhar a contínua e acelerada complexificação tecnológica do mundo consecutivo à Revolução Industrial, ela mesma, aliás, "presente" no filme através da desajeitada e deselegante, descomunal, assustadora, maquinaria agrícola da época.
Neste sentido, o filme (como o livro, aliás, volto a dizer) "retoma", de resto, com uma subtileza e até um humour invulgares, aquele que é, no fundo, o motivo (e a inquietação cultu(r)al!) de Maria Edgeworth, no seu belíssimo "Castle Reckrent", um dos mais interessantes e característicos exemplos de obra literária centrada nesta espécie de socialmente dolorosa "esquina civilizacional" da História que foi o parto da modernidade, aí, ao longo de todo o século XIX, situado.
A errância dos d' Urbervilles reconstituida no filme tem muito de discreta (e até grotescamente trágico e, simultaneamente, épico); algo de remotamente tolstoiano, ecoante designadamente da "Guerra e Paz", localizada esta, aliás, temporalmente, como se sabe, no período de onde, no fundo e em última instância, se originou a própria Revolução Industrial inglesa: a Revolução Francesa de onde, por sua vez, viria a emergir, triunfante, a burguesia que há-de ou, pura e simplesmente, "devorar" e substituir ao "volante da História" ou, em muitos casos, "integrar" e "engolir" em si a aristocracia entrada em acelerada queda económica, social, tecnológica, política e civilizacional.
O humour de "Tess" está, desde logo, no modo como os autores do livro e do filme, Thomas Hardy e Roman Polanski na sequência deste, escolheram representar nas suas respectivas obras essa mesma aristocracia: na figura de uma família económica e socialmente decadente, ignorante e ignorante do seu passado (privada de qualquer memória directa deste), liderada por um pai alcoólico a quem a cupidez e a súbita (mas bronca, míope, desoladoramente mesquinha!) obsessão com a fortuna faz com que tenha lugar a "venda" (e, no fundo, toda a tragédia dela decorrente) da bela Tess d' Urbervilles.
Na escolha da actriz que lhe dá corpo e rosto (voltando agora, muito merecidamente aliás, a ela) Polanski revelou, de facto, uma intuição ou uma percepção assinaláveis: Kinski é, ao longo de todo o filme, um espantoso "estudo" vivo sobre a pureza e a inocência, sucessivamente revelada e perdida, imolada a um mundo sem piedade onde só a riqueza, subitamente em processo de (convulsíssima) redistribuição histórica, conta.
Na arquitectura narrativa do filme, há, a meu ver, apenas uma falha--embora algo notória e pesada, digamos assim: a que envolve a (falta de real) motivação de Tess para matar o amante.
Deixá-lo, conforme o filme se desenrola, com certeza.
Mas matá-lo parece, no contexto, de facto, francamente deslocado e forçado.
Mas, volto a dizer, o filme recria com particular eficácia essa inquietante impressão, muito difusa de brumosa desfixação, de resignada errância e dolorosíssimo desenraizamento que constitui, no fundo, a expressão narrativa do próprio desenraizamento e da errância da aristocracia, perdida por momentos da História mas também e de algum modo, sobretudo, nela.
Circunstância que um uso muito amplo da câmara (e do próprio espaço--da vasta, aberta, espacialidade--do grande écrã)--a esparsa, embaciada horizontalidade, as largas pinceladas da câmara de Polanski--exprimem com assinalável brio e mesmo, como disse, de um modo geral, com inegável brilho.
2 comentários:
De facto a Ingrid Bergman era uma mulher lindíssima como a Liz Taylor ou a Jane Russel,mas muito melhor actriz que elas.Na minha modesta opinião claro.
Era, sim senhor!
E tinha um rosto fabuloso de trágica expressividade que realizadores como Hitchcock (que fez "Under Capricorn" a pedido dela e que odiou o seu próprio filme...) ou Cukor (num sinistro e muito 'freudiano' "Gaslight") entre muitos outros exemplos, tiraram todo o partido possível.
Curiosamente, houve uma Bergman italiana: Silvana Mangano, ela própria senhora de um rosto incrivelmente expressivo que a dispensava, em última análise, de "representar"...
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