O inevitável "Público" (desta feita, o de hoje, dia 28.04.09) insere um texto da autoria de Miguel Gaspar onde, entre outras coisas, se fala de partidos políticos.
De uma nossa suposta má relação (não sei se "natural") enquanto sociedade, com eles.
E escreve-se: [nessa conflituosa ou, pelo menos, difícil, atribulada, nossa relação colectiva com eles] sobrevive "[...] um desejo camuflado de voltar ao tempo dos ditadores, onde se pode gozar a pouco recomendável liberdade de entregar a nossa responsabilidade a outros".
Ora, nesta formulação aparentemente inatacável em si mesma, há, com todo o respeito, um, no fundo, evidente equívoco ou mesmo sofisma.
Na realidade, há muito que venho insistindo sobre o modo como, no actual sistema partidário português, supostamente democrático, já se verificou, na prática, uma espécie de "deslizamento" subtil interior de "terras políticas" que acabou por conduzir a uma deformação persistente na estrutura básica do mesmo, caracterizada esta pelo facto de aquilo que deveria estar na sua base, no seu núcleo, no seu código genético institucional e consistir na cedência instrumental do exercício funcional do poder ter dado já lugar a uma espécie de "fantasma meta-institucional" objectivo definido, por seu turno, pela circunstância de com o exercício do poder ser autoáticamente cedido o próprio poder como tal.
A este fenómeno de "deslizamento meta-institucional" verificado no interior, isto é, nas camadas menos imediatamente 'visíveis' (ou mesmo completamente invisíveis) do sistema chamei eu um "apodrecimento" (ou, no mínimo uma "mutação objectual") da Democracia em mera "demomorfia instrumental" de facto, caracterizável ou caracterizada, afinal, em última mas real instância, precisamente por aquilo que Miguel Gaspar descreve como a (para alguns prazeirosa) "liberdade de entregar a nossa responsabilidade a outros".
Entre ambos os "sistemas" (ou entre o sistema prpriamente dito e a sua "sombra" projectada na "parede política" em redor do mesmo); isto é: entre a Democracia e a "demomorfia" ou "deriva demomórfica", há, diria eu, uma fronteira natural: a existência ou não de uma opinião pública.
De uma (verdadeira) sociedade comummente dita 'civil'.
Não servil: civil, mesmo...
Ora, isso é coisa que, entee nós, não existe.
Por razões históricas concretas, Portugal que nunca conheceu exactamente um feudalismo genuíno; que conheceu, pelo contrário, como defende, por exemplo, Jaime Cortesão, uma base municipal potencialmente geradora de uma consciência (e de uma sub-consciência!) colectiva democrática estável a que poderia chamar-se, com alguma defensável propriedade, também 'natural'; Portugal que nunca incorporou verdadeiras regiões e nunca teve como Espanha ou França de lidar com o problema de integrá-las, com maior ou menor dificuldade, numa unidade orgânica, chamemos-lhe: secundária ou mesmo terciária; Portugal, dizia, foi sempre, todavia, de um modo ou de outro, uma comunidade nacional argumentavelmente, em mais de um sentido, inorgânica.
Nele, sempre faltou uma base material, objectiva, para a integridade.
Não lhe terão faltado projectos vagos, difusos--muitas vezes, (in) essencialmente poéticos.
Mas uma verdadeira base objectual, a meu ver e em tese, nunca existiu de forma estável e fundamentadora de uma verdadeira (sub) consciência nacional objectiva, efectiva e com acento no activa.
Dinâmica.
Dialéctica.
Aquilo a que chamo a "tanatopia nacional" ou o "pensar tanatópico electivo português" é perfeitamente emblemático desse fenómeno ou dessa fenomenologia envolvendo um conjunto de formas estáveis e distintivas de 'negociar' com a própria consciência (com a consciência e a subconsciência de si) o projecto nacional de renunciar a intervir individual mas, sobretudo, colectivamente sobre a História e sobre a realidade em geral.
A "tanatopia" passou a ser, assim, a um tempo e a prazo, causa e efeito da inexistência de um 'Portugal orgânico' nunca construído, como ideia consistente e sólida, sobre um conjunto de práticas envolvendo o desejo de organizar-se para intervir consistemente sobre a História.
A nostalgia da relevância geopolítica e geoeconómica rapidamente passada (mesmo aí, um fenómeno socialmente muito limitado e fortemente "significado" nesses mesmos termos sociais, como testemunha a obra de um Gil Vicente ou até de algum Camões, por exemplo); a Inquisição; a dependência de Castela; as invasões francesas; a guerra civil impediram que Portugal conhecesse, por exemplo, uma actividade produtiva, a dado passo industrial, que fosse capaz de ter gerado como sucedeu, entre outros países, em Inglaterra e França as tensões sociais [as lutas de classe(s)] que geram, por sua vez, no inconsciente colectivo a percepção mais ou menos estável, mais ou menos instintual de que a História e a realidade em geral são mutáveis e que existe, cumulativamente, objectivamente uma relação igualmente estável passível de ser percebida por aquela mesmo subconsciência colectiva entre as mudanças verificadas no tecido da realidade (a possibilidade objectiva de mudar ou "mutar" esta) e a acção humana, individual ou, volto a dizer, sublinhando: colectiva.
A cultura tanatópica que se foi estabelecendo entre nós representa, no fundo, o oposto mais ou menos exacto desta outra.
O desejo (ou o projecto?) mais ou menos prazeiroso e tranquilizador de entregar sempre "a responsabilidade a outros" de que fala Miguel Gaspar resulta daqui e entronca, pois, naturalmente aqui, onde a renúncia à acção reentrou secundária ou terciariamente na nossa História colectiva completamente redimida já na forma idealizada de "valor", num sentido quase para-diltheyiano, chamemos-lhe assim.
A tanatopia 'inspira-se' fortemente no próprio modo judaico-cristão tópico de aperceber e representar cultu(r)almente a realidade.
Ideias ou 'ideações' imediatamente referenciais como "carne" (fraca) e "espírito" (distinto da "carne", "prisioneiro" ou "refém" da condição material--a característica "esquizofrenia ôntica", diversamente representável e diversamente quantificável, digamos assim, mas sempre, em última instância, reconhecível do Judaísmo e do Cristianismo, chamemos-lhes: tópicos);"pecado" e "redenção";"vida material" (fugaz, breve e falível) e "Além" ("fora do Tempo" a "felicidade perfeita", a "beatitude na morte", no não-agir, no transmutar-se numa essência divinal ou para-divinal, "the way of all flesh", como titulava Butler); de "paraíso perdido"/"paraíso reencontrado"; de "morrer" e "ressuscitar" dando, no limite,"morrer para resssuscitar"; ideias ou 'ideações' deste tipo, dizia, acabaram inevitavelmente por... contaminar os próprios modos tópicos de (não) estar na História, de dela se evadir "gloriosamente", não como fuga mas, ao contrário, como destino natural que não se faz, não se constrói, não se fabrica mas se cumpre.
A Democracia, entre nós, vem quase invariavelmente (de forma paradoxal, num País que, como atrás vimos, até nem teve, nem conheceu, uma verdadeira feudalidade) "de fora": de França, com os ecos da Grande Revolução e a acção do Grande Exército; de Inglaterra, com os liberais.
Aquilo que a caracteriza é, diria eu, exactamente esse facto de ela operar sempre topicamente como um produto 'de importação'.
Entre nós, nunca existiu, com efeito, uma verdadeira indústria nacional do pensar democrático.
Isto é: a organização em moldes genuinamente democráticos (envolvendo um projecto teórico mas também indispensavelmente uma comunidade que o visse como um anseio genuino) nunca constituiu, por quanto vimos, uma forma natural de ocupar e, sobreudo, de protagonizar a História.
De facto, a democracia, as diversas formas possíveis de pensar democrático ou mesmo consistente e activamente democêntrico é/são algo que desce mais ou menos pontual, mais ou menos ciclicamente sobre a sociedade portuguesa, não algo que dela sobe ou se eleva, como acontece com a representação ou o paradigma teorétricos do que chamo o "Estado-consciência": o Estado como concretação de um conjunto organizado de anseios que não se desiste de ver objectuados num sistema operativo, por sua vez, capaz de reprojectá-los dialectica e efectivamente sobre quem os concebeu e desejou--e pretende ver eternizados num plano histórico, social e político orgânico concreto.
A partidofobia nacional está, pois, por tudo quanto disse a quilómetros de ser um fenómeno moderno.
O salazarismo nasce precisamente dela: da forma que ela assumiu após a implantação... "das repúblicas"--quero dizer: da República histórica, a das elites ideológicas e políticas e a outra, a popular que nunca foi verdadeiramente capaz de entender da anterioro seu conteúdo em possível democraticidade de modo a "protagonizá-la", a essa democraticidade, ao menos secundariamente.
Isto é: não tendo nascido como projecção directa e natural de qualquer pulsão minimamente consciente, generalizada e estável, das massas, a Democracia nem depois de implantada pela força pôde ser verdadeiramente reconhecida como concretação de um genuino projecto seu por essas mesmas massas.
Na verdade, o problema é esse mesmo--sempre foi esse mesmo.
Há quem lhe chame sebastianismo, há quem lhe chame inúmeras outras coisas, umas boas, outras más.
A verdade, todavia, é que nem a monarquia, nem sequer a República foram alguma vez capazes de criar esse cimento de cidadania (uma questão que, além de histórica é, também, especificamente económica) que é imprescindível que exista para que haja alicerces sólidos para recebeer uma verdadeira Democracia.
A Democracia não se decreta, de facto: quando ela resulta exclusivamente ou quase de "decretos", o resultado inevitável é a morfocracia, isto é, um sistema com os ógãos (alguns órgãos!) da Democracia mas sem o seu espírito ou a sua alma.
Basta olhar para o que se passa politicamente à nossa volta, hoje mesmo, para constatá-lo e percebê-lo com toda a clareza que é possível.
[Imagem de topo extraída com a devida vénia de portugalsecreto.no.sapo.pt]
4 comentários:
Totalmente de acordo, e diria até mais: a não existência de uma verdadeira opinião pública no nosso país onde mesmo com 35 anos da suposta "democracia ou poder do povo" provoca uma submissão ao poder público (representado em última instância pelo Governo), ainda com muitos tiques da época salazarista (digo eu que só nasci em 80...),que só esporadicamente é interrompida quando o Governo exige mais deveres dos cidadãos ou quando "lhes vai ao bolso". Essa apatia ou submissão perante o poder político ou público provoca claramente o abuso deste nas suas atitudes pois sabe que a tal opinião pública não é capaz de o incomodar. Democracia verdadeira só funciona com um povo que assuma os seus direitos e deveres permanentemente e não quando se afecta a classe a ou b cuja resposta é invariavelmente a greve ou manifestação da praxe.
Pelos documentários que já vi sobre os primeiros tempos da Democracia portuguesa,vejo que o povo em grande parte ainda analfabeto e inculto não estava claramente à altura de assumir o seu papel de soberano.Muito ruído,muitas manifestações e greves a exigir isto e aquilo e é claro uma grande vontade dos partidos em terem eleições o mais rapidamente possível.
É verdade, Gonçalo!
E, no entanto, estava ali o embrião de uma Cidadania que não fomos, como sociedade, de todo, todavia, capazes de construir!...
As "comissões" (de estudantes, de utentes dos serviços de saúde, de inquilinos, de moradores, de... tudo!) que, na altura, brotaram (para utilizar um lugar-comum eloquente e esclarecedor) como cogumelos da própria acção individual e colectiva do povo, poderiam (e deveriam!) ter sido o núcleo gerador da 'tal' opinião pública que fosse, a partir desse paradigma essencial de organização, capaz de funcionar como o interlocutor orgânico e activo (sobretudo activo!) do poder político.
Condicionando-o e determinando-lhe a forma, a direcção e o sentido da sua acção particular.
ISSO era o 25 de Abril!
Não o apodrecimento e a coagulação da sociedade em partidos/agências de empregos ou 'sindicatos de poderosos' de todo o tipo.
O impulso inicial do "povo de Abril" esgotou-se e rapidamente se dissipou e extraviou!
O eixo da decisionalidade regressou ao topo da pirâmide e tudo o que era "Abril" e "espírito de Abril" se perdeu.
Tragicamente!
Um abraço!
Volte sempre!
Carlos
Sim, os partidos rapidamente se apropriaram dessas iniciativas e isso não terá sido díficil e está de acordo com o que diz no texto, uma sociedade desde sempre apática à espera que uns "carolas" tomem as decisões díficeis,não foi também isso que fizeram os capitães de Abril? Não poderia ter sido de outro modo,pela luta de classes uma revolução popular? A minha opinião é que se Abril falhou foi porque ninguém o mereceu a começar pelo povo que não soube estar à altura da sua missão,também não estaria preparado para ela, o problema é que nunca está preparado como no caso do liberalismo ou da 1ª República também nestes casos rapidamente os partidos se aproveitaram da incapacidade popular de fazer as reformas ligada com a ausencia de que fala com razão de confrontos de classes ao longo da história.
É!
É um verdadeiro círculo vicioso: O verdadeiro círculo vicioso.
O povo não se organiza porque não sente a necessidade de aprender como e não pode aprender como porque... não se organiza.
É por isso que eu pessoalmente acho que a grande tarefa da Esquerda (da autêntica!) passa, hoje, outra vez, centralmente por retomar algumas práticas essenciais a que recorreu antes de '74.
Fazer de conta que NÃO fazemos de conta que estamos em ditadura.
É uma "ditadura de cristal" ou "de vidro transparente" mas ditadura, em qualquer caso.
Então, é essencial que procedamos como "antes", isto é, trabalhando junto das colectividades populares, dos clubes de jovens: com Teatro (na linha do que fez em '74 e '75 entre nós o Augusto Boal n' "A Barraca", por exemplo), com clubes de leitura grupal comentada ou de visionamento de filmes e noticiários televisivos, etc.
Eu venho tentando fazê-lo com um "Cine-clube na Biblioteca", organizado em colaboração com a Biblioteca Municipal local: passamos filmes e, em seguida, comentamo-los de uma perspectiva cinematográfica mas também social, política, etc.
Da perspectiva que cada um quiser propor.
Trabalhamos com todo o tipo de filmes: "westerns", policiais, etc.
Com os "westerns", por exemplo, partimos para a análise de muitas formas de colonialismo com os índios no lugar dos povos africanos, o exército dos E.U.A. no dos exércitos coloniais.
Depois, há os índios "bons" (que colaboram com os colonos...) e os "maus" (que resistem): Cochise, Gerónimo...
"Forte Apache" de Ford, "O Soldado Azul" de Ralph Nelson...
E assim por diante.
É sempre possível "ligar" a realidade toda numa espécie de círculo de que, uma vez ele percorrido, nasce idealmente sempre alguma luz...
É, acredito eu, um princípio daquela política de "esclarecimento sugestivo" que eu penso que é, hoje-por-hoje, uma chave capital do esclarecimento e da consciencialização para a realidade circundante...
É, pelo menos, preciso acreditar que sim...
Enfim...
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