segunda-feira, 27 de abril de 2009

"Sociedade do conhecimento sem... conhecimento da sociedade"

Um dos mitos (para não lhe chamar abertamente embustes!...) protagonizados (na realidade, liderados!) pelo actual poder político em Portugal é aquele que assenta na falsíssima ideia de que se viveria, hoje-por-hoje, entre nós, numa genuina sociedade "do conhecimento", mais ou menos caracterizada por se centrar exactamente no uso regular e, sobretudo, consistente da tecnologia que a 'modernidade' põe à disposição (à disposição potencial, à disposição muito genérica é preciso acrescentar desde já...) das sociedades contemporâneas, em particular das que se situam no chamado "Ocidente".

Numa gnoseotopia ou civilização demonstravelmente gnoseotópica, por conseguinte.

Trata-se, como digo, de um mito.

Desde logo, porque, como há muito venho repetindo, essas mesmas sociedades "ocidentais" aquilo que efectivamente fazem (e nem sequer é apenas sistemática: é sistemicamente!) ao saber nas suas múltiplas formas de que a tecnologia é, na realidade, apenas uma é integrá-lo efectivamente em si mas na condição (r) estrita e (im) puramente instrumental de 'mercadoria' e/ou de 'propriedade' utilizadas, uma e outra, no "fabrico" ou na "produção" privada de capital o que significa, desde o início, uma utilização altamente "significada", isto é, substantivamente selectiva, reservada, do próprio saber o qual, como também não me canso de repetir, apenas fica social, política e até juridicamente acessível ao conjunto da sociedade na forma geneticamente inerte de "produtos" avulsos ou (em mais de um sentido...) não-orgânicos ou mesmo abertamente inorgânicos de si.

Ou seja (parafraseando o conhecido "mot d' esprit" de Bernard Shaw sobre os Estados Unidos e a Inglaterra--cito de cor: "dois países sob muitos aspectos semelhantes separados por um idioma comum", diz deles o autor de "Pigmalion"--poderíamos mutatis mutandis dizer que, de uma maneira geral, a sociedade, as sociedades modernas e o conhecimento são duas entidades temporalmente coincidentes mas separadas entre si pelos produtos obtidos a partir da "transformação industrial", potencialmente socializável (ou mesmo: idealmente democratizável) deste último nesses mesmos produtos.

O que na realidade se pode afirmar das 'nossas' sociedades ditas "ocidentais" contemporâneas relativamente ao saber (aos usos distintivos e cultu(r)ais mas, de igual modo, políticos do saber) é, diria eu, que é próprio delas "enclose" (como na primeira revolução industrial foi feito à propriedade física das terras) desta feita, o próprio conhecimento como tal que opera, assim, de facto não como um elo de ligação entre as sociedades e a possibilidade de cada um agir directa e autonomamente sobre a realidade mas, exactamente ao contrário, com os produtos do conhecimento usados como um "biombo", um "screen" entre as sociedades e essa possibilidade democraticamente ideal de acção autónoma sobre o real, transformando-o onde e como fosse entendido que ele deveria sê-lo.

Como tenho também amplamente insistido, a uma primeira burguesia histórica que introduziu, como se sabe, na civilização em geral o princípio realmente revolucionário de que a propriedade para poder ser legitimamente fruída tem de ser previamente legitimada, isto é, tem de ser objecto de uma prévia legitimação ou justificação, objectivamente demonstrável, de si; a essa primeira burguesia (a cuja vigência histórica e política correspondeu um paradigma de escola teorica e, sob muitos aspectos, prática ou seja: realmente democrático) sucedeu, uma vez preenchida a propriedade deixada "vaga" pela aristocracia 'deposta' em 89 uma segunda (e, depois, uma terceira e assim por diante) burguesias "de contenção" porque o que passou, nesse caso, a estar em causa já não era a aquisição da propriedade (sectores liderantes dentro da burguesia haviam-na já, no essencial, ocupado e concentrado) mas a sua conservação nas mãos dos que, a seguir à Revolução, nos anos, nas décadas, que se lhe seguiram, a ocuparam, usando a técnica e a tecnologia como moeda de troca ou melhor: como argumento social e politicamente legitimador.

A chave do processo de ocupação da propriedade foi exactamente o saber, o conhecimento que a burguesia transformou, a breve trecho, naquilo que em breve passaria nuclearmente a ser: a própria matéria-prima básica no processo social e histórico (até mesmo civilizacional) de re/produção contínua de capital, como comecei por recordar.

Falando especificamente em termos de Escola ou de escolicidade da "nova" burguesia, o que há a dizer e a concluir é que ela passou naturalmente a reflectir enquanto «objecto institucional e cultu(r)al» a nova realidade deixando, ao contrário do que acontecera com a Escola da primeira burguesia e até do primeiro proletariado saídos como paradigma da Revolução Francesa, de ser a placa giratória da aquisição de saber (de obtenção, na forma de um "direito" dos meios de transformação objectiva da realidade) para passar a ver serem em si depostos, exactamente como acontece hoje ainda, um conjunto de saberes sucessivamento desactivdos da re/produção privada de capital.

A consequência disto é que, a dado passo, viria a nascer, ocupando o espaço deixado vago pelo saber ao ser todo ele transferido para a propriedade dos re/produtores privados de capital, uma espécie de vaga e indefinida ciencialidade constituída, meio pelos saberes desactivados pela produção de capital, meio por formulações vagamente políticas consistentemente confundidas amiúde com o conhecimento autêntico e é essa ciencialidade indefinida e, no fundo, também inorgânica que preenche hoje-por-hoje os curricula escolares, sobretudo nos estádios intermédios dos sistemas educativos.

Ou seja, longe de se "cientizarem", as sociedades modernas do "Ocidente", aquilo que fazem nas respectivas Escolas ou «escolicidades» em geral é gerir política e até, sob muitos aspectos, tecnicamente o vazio cognicional efectivo criado também politicamente pela transferência consistente do conhecimento da própria sociedade como tal para a produção.

É isso que explica, em termos (diria eu :) "macropedagógicos" e/ou especificadamente "macrodidácticos" o modo como as formulações da própria necessidade (aquelas a que chamo "epistemologicamente necessitárias") dão regularmente lugar, nas agora (quase?) completamente inorgânicas (nas sistemicamente in-orgânicas) escolicidades neo-burguesas contemporâneas, a reformulações elas mesmas im/puramente in-orgânicas e instrumentais de si de que, não hesito em afirmá-lo, a questão muito recente do chamado Acordo Ortográgico são um esclarecedor exemplo.

O "Acordo" em causa, com efeito, representa para quem tem um mínimo de conhecimento da idiomaticidade específica da língua portuguesa o próprio oposto da necessidade "de episteme", digamos assim.

É um mero instrumento de "política" comercial que retornou sobre um domínio epistemológico concreto (o do idioma), retroagindo exogenamente sobre ele e concretamente sobre as leis específicas que o regem enquanto universo universo epistemológico particular, deformando-o e deformando-as, às «leis» em causa a fim de servir objectivos que nada têm, em última instância a ver, com a "saúde epistemológica" do referido 'universo'.

O "Acordo" em causa constitui, de facto, a meu ver, um bom/péssimo "exemplo" do modo como a Epistemologia serve (numa sociedade que, aos repelões se reivindica da tecnologia e, de um modo mais geral, do saber, do conhhecimento) a política--do modo como ela está ao serviço de um conjunto de usos metagnoseológicos, não-democráticos e im/puramente instrumentais de si que a desautorizam e, pior ainda, a desfiguram, no limite, por completo.

Para que não seja acusado de falar sem provar dou um exemplo desta deformação da Epistemologia pela política (com minúscula...) (*)

Segundo alguns linguistas (e pretensos linguistas também: sobretudo estes) o que a reforma veio fazer foi unificar alguns aspectos não-necessariamente nucleares do português tal como é falado nos vários pontos do globo onde é idioma oficial.

Desde logo, é evidente (parece-o, em todo o caso...) que qualquer projecto demasiado unificador de um idioma de uma perspectiva inter-nacional e, especificamente,trans-continental tem necessariamente de conter em si uma componente essencial de prudência e respeito por aquilo que é a respiração natural das línguas.

Enuncio aqui um princípio geral, é certo, mas a verdade é que não pode ser esquecido que o português falado em Portugal, no contexto de uma europeicidade precisa e muito concreta, na vizinhança física do castelhano espanhol e na vizinhança cultu(r)al do Francês-de-França, do Inglês-de-Inglaterra, do Italiano-de-Itália ou até mesmo do Alemão-da-Alemanha, tem necessariamente de evoluir segundo padrões específicos de influencialidade e mutabilidade que são, por definição, substantivamente distintos dos que vigoram no Brasil ou em África.

Nas diversas "Áfricas" possíveis) e isto para não falar já do Português falado, por (outro) exemplo, em Timor).

Nivelar pode, em inúmeros aspectos, equivaler a mutilar arbitrária e até violenta, agressivamente, o próprio crescimento natural das línguas na sua interacção natural com o meio. Este é, em meu entender, um princípio teórico informante essencial, de ecologia linguística e até conceptiva, que deve mesmo idealmnte, sem dúvida, sobrepor-se a uma visão excessivamente unificadora e, pior ainda, compressora dos idiomas e, sobretudo, dos pensamentos que devem necessariamente ser vistos como subjazendo à produção natural e saudável desses mesmos idiomas.

E é precisamente porque estes evoluem (ou, como prefiro dizer: "voluem") autónoma mas não, em última (mas real!) instância, arbitrariamente que se chegou a um ponto em que unificar pode representar disciplinar, com indesejável e gratuita violência, uma evolução (ou uma "volução") que assim deixa de ser exigida pela própria ecologia da idiomaticidade específica em causa.

Na verdade, todos sabemos hoje como, em termos de tradição ou mesmo cultura articulatória consolidada, o Português do Brasil abre instintiva ou "instintualmente", hoje-por-hoje as suas vogais "a", "e" e "o" sem para tanto necessitar de pontuá-las especificamente com qualquer acentuação particular.

Ora, no Português de Portugal, tal tradição ou cultura fónica pura e simplesmente como é sabido não se verifica.

Quando "é preciso" abrir as vogais em causa, o Português de Portugal recorre à acentuação mas, também (facto completamente ignorado ou incompreendido pelo "reformador" mais recente) ao uso de consoantes como o "p" ou o "t".

Se eu que escrevia "recepção" passar a escrever "receção" para... unificar formalmente grafias, o que acontece é que o "e" da palavra fecha imediatamente, não se distinguindo daí em diante sem a escrita os termos (e as ideias contidas em) "recepção" e "recessão"...

Ou seja: em "acto", por exemplo, o "c" não está 'lá' por acaso, isto é, não é inútil.

Na realidade, ele desempenha uma função específica na palavra: aclarar ou abrir o "a" que o antecede.

Tal como o "p" faz no citado "recepção".

Não se percebe como linguístas reputados podem afirmar que, num caso e noutro, as consoantes "c" e "p" são... inúteis.

Como vimos, não são: desempenham uma função desatonizante específica, inútil, isso sim, no Brasil, por exemplo.

Como não foi a Epistemologia ou a Ecologia do Português quem pediu a alteração agora proposta mas um projecto estr(e)itamente "político" ou "politiforme" exterior (e estranho!) à Epistemologia (e esta pela mão de alguns linguistas mais dóceis) aceitou conformar-se com esse pedido ou essa exigência da política, o resultado foi uma deformação inútil e perturbadora da Ecologia, neste caso, da idiomaticidade do Português falado em Portugal.

É, diria eu, um (como disse:) bom/mau "exemplo" de intrusividade da política como neo-ciencialidade espúria e instrumental(izadora) no âmbito autónomo da Epistemologia.

Não será a mais grave nem talvez a mais notória.

Mas é, sem dúvida, um (não me canso de dizer: bom/péssimo) exemplo do modo como, numa sociedade dita com alguma (infundada, embora, como tentei sumariamente demonstrar) frequência "do conhecimento", famosa pelas suas estridentes e triunfais reivindicações em matéria de "choques" (eu diria mesmo... "electro-choques") tecnológicos e afins, a ciência, naquilo que ela tem de mais próprio, específico e necessitário é, afinal "livremente" usada para cumprir objectivos que consigo muito pouco ou nada têm que ver...

NOTA

(*) A questão das relações da Epistemologia com a Política (com maiúscula) constitui uma questão-chave do nosso tempo.

De facto, a Política e a Epistemologia não podem, em caso algum, ser vistas como adversárias. Toda a teoria do "contrato civilizacional" (que expendo--e defendo!--noutro ponto deste "Diário") assenta precisamente no projecto de harmonizar sistemicamente uma e outra áreas-chave do Humano e especificamente do Social.

Quero, todavia, deixar aqui concretamente dito que, do meu ponto de vista pessoal o problema não está, de modo algum, na Política: o problema está, sim, todo ele na política que representa neste contexto o esvaziamento tecniforme das sociedades supostamente "do conhecimento" que, na realidade, nada mais são do que «paradigmas de societação» onde esse mesmo conhecimento opera, de facto (e até, sob muitos aspectos, de direito!) naquela condição im/puramente ancilar e estr(e)itamente instrumental que começámos por notar, ou seja, na de mera matéria-prima de re/produção de capital ou mesmo e até mais precisamente, como um primeiro capital que se reinveste continuamente em si mesmo a fim de permitir a continuidade da produção regular de capital.
[Imagem extraída, com a devida vénia de pensarbasto.blogspot.com]

Sem comentários: