segunda-feira, 6 de abril de 2009

"A Justiça em Portugal"

Poderia começar a entrada de hoje dizendo assim: da Justiça em Portugal fala-se demais e toda a gente fala.

Estaria provavelmente certíssimo!

O facto, todavia, de que poderia, de igual modo, começar da maneira exactamente oposta com possível (provável e se calhar até demonstrável!) igual carga de razão, isto é, o facto de poder abri-la dizendo que "da Justiça, em Portugal, não se fala ainda o bastante" e que, pior, "não só isso como ainda que não é bastante a gente que entre nós dela fala" não somente me deixa, a mim pessoalmente, totalmente perplexo como parece, ao que tudo indica, indiciar já (o que é obviamente muito mais grave ainda!) aquilo que há de efectivamente muito errado naquela 'Justiça'.

A circunstância de um Pinto da Costa, de um Ferreira Torres e de uma Fátima Felgueiras, como noticiava o sempre... "espectaculoso" "Expresso" na sua edição de 04 de Abril saírem, triunfais e quase todos eles oficialmente impolutos, dos tribunais onde foram julgados por actos de uma gravidade dificilmente mensurável e seguramente também, de um modo ou de outro, dificilmente imaginável indicia, por seu turno (se não prova circunstancialmente mesmo!) que, de facto, há qualquer coisa que, de todo, não «joga bem» na Justiça em Portugal.

Porque todos são culpados?

Não necessariamente.

Mas, com certeza porque ou, efectivamente, o são e saem ilibados ou, em alternativa, porque o não são--porque nenhum deles o é!--e, então, o que se passa é que, como nação, temos é uma "Lei" que leva a tribunal demasiados inocentes e que, por conseguinte, se calhar, os institutos legais criados por essa mesma "Lei" para concretizar em termos materiais, objectuais, a presunção de inocência, carecem de urgente revisão--o que evidentemente não é melhor...

Num caso ou noutro, o que me parece fundamental é que a Cidadania se pronuncie.

Que fale.

Que tenha opinião--e daí eu ter começado por admitir que, em tese e contra aquilo que toda a gente diz, talvez, afinal, não se fale o bastante de Justiça, em Portugal.

Da Justiça em Portugal.

Claro que não chega 'falar': claro que é vital saber exactamente aquilo que se diz mas, em última instância, tudo começará, estou em crer, de um modo ou de outro, em última análise, naquela necessidade instante (e ideal) de falar que, a mim, pessoalmente, em mais este momento e esta circunstância, me invade.

Pela minha parte, estive ontem a assistir, num canal televisivo a um debate entre dois juristas sobre o processo que envolve Pinto da Costa e um árbitro a quem alegadamente teria "comprado" para beneficiar o clube a que preside.

Os factos que vieram a público (e a julgamento) numa série de questões apresentadas por uma juíza ao réu, neste âmbito, são--no mínimo--incrivelmente comprometedores: o árbitro de um jogo de futebol desloca-se de Braga a Gaia, parece, a fim de visitar em privado um dirigente importante de um dos clubes que vai a jogo dois dias depois; pede-lhe ajuda num caso íntimo envolvendo, suponho, o pai do árbitro em causa e uma suposta amante deste, em Lisboa; o dirigente em causa é designado numa conversa entre o árbitro e o dirigente que o levou a casa daquele pelo "homem do banco", pelo "caixa-chefe" ou lá o que foi; deixam o carro noutro lugar e vão dissimuladamente a casa do tal dirigente.

A juíza (ou uma juíza: a que julgou o caso ou a que instruiu o processo, francamente não me recordo) questiona o tal dirigente sobre tudo isto assim como sobre uma frase posteriormente ao jogo proferida, em "código" (outra questão que faz "espécie" à juíza, aliás e a qualquer pessoa minimamente normal em questões de bom senso e inteligência mas enfim...) onde parece impossível não "ler" uma alusão (mal!) camuflada a um "favor"--e mesmo assim, apesar de tudo isto, para grande escândalo de um dos juristas intervenientes no debate a que atrás me refiro não resultou (não pôde, ao que parece, técnica e objectivamente resultar) a mínima condenação, fosse de quem fosse.

Era a tese (aliás, compreensível) do outro interveniente: tecnicamente, nada daquilo é crime.

Falho de ética?

Com certeza!

(Também, era melhor que nem isso fosse!)

Mas crime, não!

Ora, eu que não questiono (não posso honestamente questionar! O meu reino" não é, formal e académica--técnico-formalmente--desse "mundo"...) a razão técnica da não-condenação neste (ou: em mais este!) "caso" aquilo que digo (aquilo que não posso deixar de dizer e por dizer) é o seguinte:

Não, pois, como jurista que não sou mas como cidadão que não prescindo, em caso (e em momento algum!) de ser, a Lei, para mim, surge-me, sempre, em última e real instância, definível como a "expressão objectivada da moral abstracta de uma certa comunidade dotada de identidade jurídica de um modo ou de outro independente e auto-reconhecível", digamos assim.

Para mim, dizia, a questão põe-se, primária (mas não primariamente, quero crer..) nestes precisos termos: a Moral pensa, o Direito concretiza, realiza, objectiva.

Se, entre uma coisa e outra, entre a «Moral» e o «Direito» começam a ser perceptíveis (e mesmo--mais grave ainda--demonstráveis!) vácuos, lacunas e disfunções (indesejáveis desencontros e... "rotações") é seguramente altura de se começarem a repensar e a reavaliar muito seriamente as formas de ligação necessariamente orgânicas que assim deixaram provavelmente de existir entre ambas as faces da moeda indivisível da Justiça, na sociedade onde tal sucede.

Um dos juristas intervenientes no debate que tenho vindo a citar (acho eu pessoalmente, com toda a franqueza, que com carradas de razão--de razão ética, de razão moral, de razão cívica!) insurgia-se contra a sentença que absolve um réu que, tudo lhe indicava era grosseiramente culpado.

E respondia o seu contricante--com igual razão (Não! Com "igual", não! Com uma razão que possuía uma força e um peso, em tese, rigorosamente equivalentes mas que era, não uma razão ética, mas uma razão alternativa e autonomamente técnica) que "sim senhor, muito bem, mas que, em termos específica e rigorosamente jurídico-formais, nada disso era objectualmente tipicável como crime".

Pois...

A questão é que, volto a dizer (e a sublinhar!) quando a "parte estr(e)itamente técnica" da «Justiça» começa a poder "rodar" para um lado enquanto que a parte ética "roda" autonomamente para outro, algo já está intrínseca e (des!) estruturalmente mal na relação fatalmente orgânica entre ambas--e esse é que é o problema.

E cá está!: afinal, bem vistas as coisas, parece que sempre se fala mesmo pouco de Justiça em Portugal!

Fala-se muitas vezes mal, é verdade--mas, sobretudo, fala-se pouco, como comecei por dizer.

Isto é: fala-se mal, desde logo, também porque, num certo sentido, se fala pouco.

A Justiça não é uma questão feita para os técnicos, para os juristas: é feita por eles mas não para eles.

Ou seja: só é desejável que sejam os técnicos--os juristas--a falar quando a Cidadania (um conceito naturalmente estranho à "portugalidade" mas enfim...)--se calou.

Dito de outro modo ainda: o trabalho dos técnicos é dar FORMA ao Direito mas não o seu CONTEÚDO.

Quando, ao invés, em matéria daquilo que são os fundamentos reais da "juridicidade" (a moral social, a moral como "figura teorética social e cultu(r)al, mais ou menos estável ou continua(da)mente temporal e consentidamente metapessoal") a comunidade deixa que os técnicos falem por ela, estão criadas, a meu ver, as condições básicas e (in!) essenciais para que todo o sistema da Justiça pelo qual essa comunidade se rege, se deforme, se vá disfuncionando e acabe, tão drástica quanto inevitavelmente, corrompido.

É esse o problema básico em Portugal: sem uma Cidadania, uma Opinião Pública, consciente, responsável e interveniente (responsável porque interveniente) não há Justiça que resista.

Mais: não há sequer sociedade--numa acepção orgânica ideal que ela, por quanto disse, já perdeu substancial, se não substantivamente, hoje-por-hoje, entre nós.

Toda a fábrica do Direito se desune, se desagrega, inevitavelmente se des-integra.

E aquilo que era Justiça se corrompe até nada mais ser na, (triste e disfuncional!) realidade assim criada, do que uma temível e tenebrosamente (im?) previsível "ciência hermética" entregue a (ou «refém de»?...) uma "classe sacerdotal" onde o poder vai, em última instância, buscar os "fundamentos" materiais de um império objectivo sobre as pessoas que lhes veda por completro (com o beneplácito escandaloso da própria Lei!...) o acesso livre, o acesso natural, o acesso democrático à Cidadania e ao Futuro.

Ao Futuro?
Qual futuro!
Começa é logo por lho vedar ao próprio presente de que ficam fatalmente privadas e escorraçadas e perversamente impedidas.


[Imagem extraída com a devida vénia de dailypop.wordpress.com]

2 comentários:

Gonçalo disse...

Opinião pública em Portugal? Mas isso existe? Se calhar até existe mas está mais preocupada em saber o desfecho das novelas da TVI.E já falta pouco para a fantochada das campanhas eleitorais aí é que somos todos cidadãos a sério nem que seja por 15 dias.Vai ser bonito ver as Felgueiras,os Isaltinos,Damascenos e outros serem levados em ombros rumo à vitória, como de costume aliás.essa história da presunção da inocência é muito do agrado dos advogados porque será? Começo a pensar que isto está cheio de inocentes, os vilões andam a procurar viver honestamente.

Carlos Machado Acabado disse...

Infelizmente, TUDO ISSO é rigorosamente verdade!...
Faz lembrar aquele inesquível "Tempos Modernos" de Chaplin quando o "vagabundo" se recusa a sair da cadeia onde se sente muito mais seguro e, no fundo, confortável e feliz do que "cá fora", em... "liberdade"!
Soberba ironia essa que faz, por sua vez, pensar em Shakespeare, autor da genial frase: "We live in a world where jakes are kings and kings are jakes": "vivemos num mundo em que os bufões são reis e os reis bobos..."
E não é que vivemos mesmo?...