terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"Leiturando Sobre a Realidade A Toda a Volta..."


Dois aspectos, duas questões da vida nacional, observados com base em matéria informativa constante da edição do "Pùblico" de 13.12.10.

Primeira questão: envolvendo a deliberação da Assembleia Legislativa Regional dos Açores de "neutralizar" [recorro à semântica de um artigo do jornal e da edição citados da autoria de Paulo Trigo Pereira, intitulado "A questão regional: cinco falácias e um problema"].

A minha formação académica e profissional não me qualifica para abordar responsavelmente os aspectos quer jurídicos, quer especificamente económicos e financeiros da questão.

A de cidadão, porém, permite-me [de facto, impõe-me!] que diga o seguinte.

Aparentemente não há, em última instância, coisa alguma de substantivamente ilegal na deliberação da Assembleias Regional açoriana.

O próprio articulista, com uma ligeiríssima hesitação embora, o admite num parágrafo que não vou agora, aqui, re-citar na totalidade devido à sua extrensão mas onde conclui que "o subsídio é eticamente condenável, [sic] mas pode ser constitucionalmente viável"; o próprio articulista, dizia, reconhece a admissível legalidade formal da deliberação.

Ora, para mim, a questão é muito claramente esta: não sei, volto a dizer, se ela é "en fin de partie", inargumentavelmente legal ou não; agora, sei o seguinte: sei que ela cria obviamente [além do evidente incómodo no seio de um governo que, por ter demasiado medo dos banqueiros e da grande finança em geral e/ou por ser demasiado inepto para encontrar uma solução equitativa para o problema orçamental e fazer outra coisa, corta a direito impiedosamente no Estado "social"] disparidades dificilmente explicáveis e dificilmente suportáveis sem revolta ou, pelo menos, sem debate sério, sem séria reflexão, entre os portugueses como eu---e que isso só pode significar uma coisa.

Só pode querer dizer que, mais uma vez, quem legisla, agora, em matéria de "descarga legislativa e administrativa regionalizante de poderes" não o soube fazer, criando a possibilidade de se estabelecerem [de forma ultimativamente de todo legal, pelos vistos] assimetrias e situações de objectiva arbitrariedade e material discriminação entre cidadãos de um mesmo país e isso é que para mim está óbvia e irregressivelmente em causa.

Se a deliberação fosse ilegal, é caso para dizer que "tudo bem": recorria-se aos tribunais e a "coisa", no limite, compunha-se.

Sendo formalmente legal, como parece ser, a questão é bem mais grave e permite [força a!] pôr o problema essencial da [in] adequação objectual da Ética e da lei que a serve ou devia, em todos os momentos e circunstâncias, servir; da [in] adequação entre a Ética e os mecanismos específicos concebidos pelas sociedades para trazê-la para o «concreto operativo» da vida das pessoas---que é, salvo melhor opinião, a razão de ser essencial e última ou ultimativa da Lei, dos sistemas jurídicos das sociedades civilizadas e o ângulo pelo qual os cidadãos, leigos em matéria da forma das leis que regem as sociedades onde eles se inserem, devem abordar as questões envolvendo aquelas, as leis, mas envolvendo, sobretudo, a sua própria relação estável e orgânica com elas.

Ora, aqui, tal como sucede, por exemplo, naquele outro caso, das escutas telefónicas em que a "forma" das leis bloqueia---mais do que sistemática: sistemicamente---a aplicação normal do respectivo conteúdo criando, desse modo, uma disfunção nuclear que é o impossibilitar legal-formalmente que situações de evidente imoralidade, a fim de que a lei se cumpra, [?] permaneçam impunidas e, por conseguinte, impunes--uma deformação consistente de episteme que afecta aquela função primária do uso social da lei que, repito, salvo melhor opinião, consiste em concretizar [ou em «concretar»] histórica e socialmente a própria consciência moral das sociedades que a criam---algo que é, diria eu, uma verdadeira "doença genética fatal" dos sistemas legislativos, com certeza, mas, muito especialmente, das próprias sociedades no seu todo, incapazes de seguir sendo, de forma concreta, demonstrável, objectiva, «sociedades [efectiva e operativamente!] éticas» e/ou/porque «eticamente íntegras e orgânicas».
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Segundo aspecto: a tenebrosa questão chamada comummente dos "voos da CIA".

Se o governo português tivesse ainda alguma credibilidade pública, nacional ou internacional, correria, desta feita, em resultado das flutuações erráticas da respectiva "argumentação/justificação" nesta matéria [como ainda ontem alguém lembrava num programa televisisivo, enunciado-as uma a uma] sério risco de perdê-la de vez.

Feliz ou infelizmente, não a tem---e por isso, por esse lado, o problema está [tristemente mas enfim!] "resolvido".

Sucede, todavia, que no editorial do "Público" citado, vem uma referência directa à questão numa abordagem onde se lamenta o brumoso secretismo que rodeou aquilo que poderia, porém, segundo o ou a editorialista, constituir "a reversão de uma decisão errada e violadora da lei internacional" [a detenção arbitrária e objectivamente criminosa de... "suspeitos" políticos; a respectiva submissão a um regime de encarceramento brutal com recurso a formas de confessa "tortura funcional"... legal (!) e genericamente a manutenção monstruosamente fora de um sistema jurídico civilizado de indivíduos politicamente seleccionados ("rounded up") por e também para forças exclusivamente policiais, tornadas abusivamente "polícia política"]; sucede, porém, dizia, que o ou a editorialista do jornal acham que fazer regressar as vítimas desta monstruosa iniquidade, deste verdadeiro crime, deste des/entendimento abjectamente... "pária" da Justiça e da Lei poderia ser uma 'coisa boa' [ou, pelos melhor, "reversora"] de algo que era inqualificavelmente perverso e repulsivamente imoral.

No Alentejo onde decorreu parte da minha meninice usava-se, com frequência, uma expressão irónica [dos tempos em que o Alentejo, além de latifundiários e respectivas vítimas, dava pão...] que, em minha casa, se utilizava muito e que era, quando algo de irreversível se achava feito, dizer: "Olha! Agora, desamassa que caíu o forno!..."

Claro que a farinha e a água, uma vez misturadas e convertidas em massa, deixam de ter regressão às formas originais: estão, nesse sentido preciso, condenadas a ser algo de novo que, no caso, por... acaso, até era bom: o [para alguns tão escasso e tão dificilmente conquistado!] pão.

Sucede que aqui, no caso dos prisioneiros dessa abominação que foi [e continua a ser!] Guantánamo [deixem-me que seja vulgar e violento como os próprios factos a que se reporta a minha reflexão!] só para a cáfila de alarves, bárbaros mal-enjorcados e abomináveis incivilizados que a criaram e para aqueles que com ela, a pretexto do "realismo político", foram objectivamente pactuando, não é.

Para qualquer ser minimamente civilizado, decente e humano, Guantánamo e tudo o que a ele se refere é uma monstruosidade sem nome que remete para um passado recente de concentracionismo, primitivismo, selvajaria e im/pura arbitrariedade que uns negam por palavras e são presos mas que outros cometem a abjecção de negar nas práticas e são poderes políticos [não sei se posso dizer: perfeitamente...] legais...

São os "negacionistas objectuais" do "bushismo" e seus cúmplices que, agora, por este entendimento impossivelmente "reversor" dos verdadeiros crimes praticados, veriam as suas malfeitorias... "desmalfeitoradas" ou o pão amargo que criaram para uns quantos infelizes que tiveram o azar de não lhes cair em graça... "dessamassado", como no sarcástico anexim familiar da minha infância...

Os "voos da Cia", mesmo os do "regresso", eram, foram e são manobras atabalhoadas de quem percebeu que "meteu o pé na argola" da desumanidade e do pariato jurídico e carcelário im/puro e simples e não sabe, agora, como há-de descartar-se da "mancada".

Não fazem reverter coisa alguma, não restauram humanidade perdida alguma, não "resolvem" rigorosamente o que quer que seja, no plano factual como no moral e civilizacional.

À semelhança do que acontece nos filmes policiais agora é tempo de o criminoso se desfazer do corpo e não sabe como...

A questão é: mas será que ajudá-lo a desfazer-se desse mesmo corpo faz quem assim procede menos co-autor, por cumplicidade objectiva, do próprio crime?...


Vale seguramente a pena "perder" nem que seja apenas uns brevíssimos instantes a reflectir sobre isto...


[Imagem ilustrativa extraída com a devida vénia de moradasdedeus-dot-blogspot-dot-com]

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