sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

"Manuel de Oliveira: um Ponto de Vista Pessoal" [por rever]


Numa altura em que uma série de acontecimentoas imprevistos quase me fez passar em claro o desaparecimento de dois dos meus cineastas de referência, Claude Chabrol e, muito em especial, Mario Moniccelli [de quem voltarei a falar noutro ponto deste "Diário"] a reexibição de uma excelente série, na RTP Memória [apesar de todos os equívocos e disparates cometidos pelos respectivos programadores, ainda uma das melhores de todas as "erre-tê-pês", agora que a "Dois" parece já ter cinematograficamente dado o que tinha a dar...] "História do Cinema Português", onde se incluia um depoimento de Manuel de Oliveira, suscita-me algumas reflexões que me apresso a registar.

Começo, no entanto, não propriamente pelo depoimento em causa mas por uma entrevista do cineasta incluída no DVD d' "A Carta" onde [cito de cor] este reivindica para o seu cinema o propósito de uma certa reescrita ou mesmo repurificação do próprio Cinema como tal, em seu entender desvirtuado por um certo [des] entendimento excessivamente comercial e massificado.

Ora, a verdade é que me parece existir neste propósito do realizador d' "Os Canibais" um equívoco profundo.

Não se trata note-se, de gostar ou não do cinema que Oliveira fez e faz.

Eu gosto, sobretudo, confesso, do que ele começou por fazer [digam o que disserem, por exemplo, "Douro, Faina Fluvial" é um grande filme, uma obra absolutamente notável de intuição e fulgurante de visualidade e pura plasticidade assim como "Os Canibais" o é, entre outras coisas, de inteligência plástica e mordacidade---algo que Oliveira respeita, aliás, escrupulosamente no texto original do invulgaríssimo Álvaro do Carvalhal] mas do conjunto da sua obra retiro, sobretudo "en fin de partie", aquilo que me parece ser, feitas as contas, a sua maior riqueza e o seu principal atributo: o de nunca ser vulgar em qualquer dos sentidos possíveis do termo mas, pelo contrário, saber sempre, por razões que nem sempre são a mesma, ser estimulante e, até. não-raro, provocador.

A verdade, porém, é que, se faz todo o sentido em termos da procura de uma escrita realmente cinematográfica que seja, de igual modo, uma escrita realmente autónoma, o modo como para o Oliveira de "Douro, Faina Fluvial" de 1927 o problema da cinematicidade daquilo que faz é resolvido [incorporando com uma frescura e uma intuição, de facto, notáveis, lições como as de Walter Ruttmann, Vertov ou da vanguarda francesa] a partir de dada altura, essa pesquisa pessoal da cinematicidade no realizador d' "O Espelho Mágico" [outro dos seus filmes de que gosto particularmente] vai orientar-se em dois sentidos que me parecem, no mínimo, daquele ponto de vista, debatíveis e profundamente problemáticos: primeiro, vai ser conduzida sempre "par rapport" à palavra, vai, num certo sentido, ser um cinema contra a palavra---até certo ponto, um cinema anti-verbal---mas um cinema que precisa, sempre, no limite, por outro lado, da palavra para se afirmar, questionando-a mas sempre, de um modo de outro, integrando-a também e não podendo, até, no limite, viver sem ela; segundo, vai ser um cinema do Cinema [ocasionalmente, do Teatro] e, às vezes [muitas vezes, mesmo!] em mais até de um sentido, um cinema-teatro [quase?] assumido.

É claro que não há nada contra um cinema que opere como uma reflexão lúcida, esclarecida, sobre si mesmo e sobre a distância de episteme que o separa das restantes formas, sobretudo das formas-irmãs, de expressão artística.

Que as questione e se questione recorrendo, por exemplo, à lição de um Brecht ou de um Piscator.

O que me parece, no entanto, também, é que é duvidoso que essa reflexão não constitua, na realidade, uma mera etapa, orgânica embora, no processo de libertação final do próprio cinema---da cinematicidade do Cinema---uma vez concluida a reflexão e alcançadas conclusões mais ou menos consolidadas e definitivas dela.

De facto, inúmeras vezes me pareceu, visionando a obra de Oliveira, que se trata de uma obra in-completa naquele sentido preciso de ao seu autor ficar a faltar um "verdadeiro filme" e que, ao contrário, nele, a tentação de usar [de manipular? De instrumentalizar o uso?] das formas como uma ilustração de ideias [uma coisa formalmente muito épica, muito brechtiana, muito teatral] colide frontalmente com aquele projecto de catarse retórica e mesmo epistemológica de que fala o realizador, questionando, por exemplo, como disse, de forma expressa, na entrevista concedida a propósito d' "A Carta" o cinema comercial norte-americano, demasiado fácil e superficial.

... Uma coisa que o cinema de Oliveira nunca será, diga-se---ou repita-se---em seu abono.

É, sim, um cinema culto, argumentativo [eventualmente, em demasia]; um meta-cinema até, estimulante, como disse, provocatório mas, diria eu também como conclusão, um cinema excessivamente ligado a uma ideia ou, pelo menos, a um espírito muito judaico-cristão quase puritano de 'desprezo ontológico e metafísico' pelo real, pela existência objectual das coisas, pelo amor por elas em favor da respectiva essência a cuja demonstração existencial elas surgem sempre, no limite, como que obrigadas senão mesmo forçadas ou, até, por ela, aprisionadas---o que pode, em tese, permitir explicar, em última instância, aquela fuga da narrativa para o infinito, aquela espécie de trans-realismo contemplativo que tende sempre a passar pelos objectos e pelas pessoas sem verdadeiramente as ver que é, em meu entender, um dos traços primários, uma das constantes epistemológicas [mais do que simplesmente retóricas] do cinema de Oliveira...

[Na imagem: fotograma d' "Os Canibais" de Manuel de Oliveira, a partir da novela homónima de Álvaro do Caravalhal]

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