quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

"«Son of Kong», Edward Schoedsack, 1933"


Constituindo um dos extras da edição recentemente distribuida com a revista "Nova Gente" do clássico de Ernest B. Schoedsack e Merian C. Cooper, esta relativa raridade, dirigida em 1933, no mesmo ano do filme-mãe, por um dos membros da dupla que dirigiu o "King Kong" original, contém aspectos sobre os quais vale seguramente a pena alinhar algumas observações.

É, desde logo, é um objecto pop globalmente cheio de boas intenções mas de boas intenções... à americana---o que diz seguramente, de imediato, qualquer coisa sobre o seu conteúdo [onde o motivo recorrente da Culpa muito tipicamente prevalece sobre tudo o mais e determina, aliás, muito do que na película vai acontecendo] assim como sobre a maneira [extremamente primária e ingénua mas até por isso mesmo inegavelmente cativante] como estão apresentadas.

É um filme sem evidentes propósitos "artísticos", um filme para as grandes plateias populares, aproveitando o sucesso do "King Kong" original, cinematograficanmente muito mais sofisticado e ambicioso.

O filme retoma o motivo, poucas semanas após o epílogo da matriz e fala do desencanto da personagem de 'Carl Denham' [o actor Robert Armstrong que a protagonizara no primeiro filme] afogada em processos judiciais resultantes das destruições levadas a cabo por Kong.

Assediado pela justiça e pelos magazines pulp, Denham decide fugir e voltar ao mar---o que cria uma curiosíssima situação de refilmagem e refeitura subtilíssimas não apenas do próprio filme original como, num certo sentido mais importante ainda, reescrita da História, eliminando-lhe desta vez as "arestas" mais agugas e mais brutais.

No fundo, tratar-se-á de uma espécie de projecção inconsciente da culpa que cria este desejo simbólico de refazer significadamente o real, ou melhor, de refazê-lo na memória, refazendo, de passo, simbolicamente a própria memória---isto uma vez que a visão que, como cultura, temos do 'paraíso' outra coisa, em última instância, não é do que essa espécie de projecto limite de correcção integral da História, desprovida esta já definitivamente das escórias que ela foi acumulando pela "carne" com que teve de ser feita, no próprio acto de ser feita.

Este---esta ideia do filme como subtil revisão meta-fílmica de si próprio---parece-me ser, em última análise, o maior interesse témico da obra de Schoedsack que, assim, parece olhar criticamente para si própria, impondo-se uma espécie de consciência reconhecível de si, algo que não se apresenta propriamente como comum neste tipo e/ou neste nível de cinematicidade.

Muito curiosas são também as [in?] discretas alusões 'políticas' do filme---muito evidentes quando ocorre o incidente da sublevação da tripulação do navio.

Aí se identificam muito subtilmente [ou talvez não tão subtilmente quanto isso, afinal...] as movimentações laborais com insubordinação e actos de pura e simples [e, além de mais, cobarde!] sedição.

Um dos revoltados chega mesmo a referir-se às personagens dos heróis como "burgueses" [!] resultando muito curioso comparar a perspectiva do filme de Shoedsack com, por exemplo, a de Eisenstein no seu referencialíssimo "Potemkine"...

Mas, independentemente do seu previsível e naturalíssimo posicionamento político [implícito mas a que pouco faltará---"if at all"...---para ser explícito] o filme tem, de facto, diversos méritos e motivos de inegável interesse como seja o cuidado em preparar o desfecho amoroso dos heróis [o 'romance' entre 'Hilda' [Helen Mack] e Carl assim como o tipo de relação muito curiosa que aargumentista, Ruth Rose, estabelece entre a personagem de 'Denham' e o bébé Kong, a dada altura operando como um autêntico "sidekick" do próprio heroi [algo exagerados certos detalhes mais burlescos do comportamento do boneco] reconstruindo [ou "reparando"...] o registo original num outro muito mais cordial e próximo, de "comédia... familiar" onde Kong já não é o vilão [ainda que com evidentes fragilidades e vulnerabilidades de vítima] que foi no original mas, de facto, uma 'personagem' cuidadosamente revista e humanizada de modo a surgir ela mesma como uma vítima da sua [para mim, simbólica, significada] condição 'monstruosa' ou 'monstriforme', digamos assim.

Num certo sentido possível, Kong é, com efeito, como comecei por sugerir, a própria encarnação da [sub] consciência colectiva da América esclavagista e genocida em luta com os seus fantasmas cultu[r]ais, históricos e políticos, tentando, de uma forma que fica sobretudo muito clara na sequência final [de facto, uma espectacular reconstrução e ressignificação do clássico "denoument" do primeiro "Kong"] conferir um significado e um sentido históricos e até morais, éticos e também civilizacionais precisos a velhos "esqueletos de armário cultu[r]al privado" que vão, como disse, do tráfico negreiro, da escravatura, ao genocídio histórico e cultural dos povos índios.

Curiosa quase comovadeora, vista retrospectivamente, a parafernália tecnológica dos efeitos especiais de Willis O' Brien que, todavia, é voz corrente não terá ficado satisfeito com o respectivo resultado final.

Uma prenda preciosa a edição em DVD.

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