quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Leiturando sobre os Mecanismos de Formação da Memória e da Identidade Humanas"


Dois textos da edição de 30.10.10 do "Público" sugerem-e algumas reflexões pessoais breves sobre o modo como não exactamente a "cultura" mas os nossos [vou usar uma analogia saída da minha formação académica linguística] os nossos... "culturolectos", o universo nuclear dos nossos... "culturolectos" se forma e se consolida, consolidando, de passo, o edifício tópico das nossas "identidades" individuais.

O primeiro, é um texto da autoria de Pacheco Pereira, uma pessoa de que, devo dizer, não gosto especialmente e a cujas lucubrações, em geral, demasiado pomposas, retórias, irrelevantes e invariavelmente vazias de originalidade sou confessadamente pouco sensível.

Não é, todavia, qualquer identificação de aionda assim mera circunstância com ideias por ele veiculadas no texto intitulado "Há três anos atrás seria ficção científica" que me leva a citá-lo mas tão somente as freferências que faz a um tal iPad e o facto de o texto referido ter coincidido com um outtro sobre um tema que julgo saber o autor do texto despreza e que é o futebol.

Falando sobre o iPad, Pereira traz à colação uma circunstância que já se tornou uma constante [ou aquilo a que eu chamaria um específico objectual] da nossa época: a possibilidade de registar continuamente 'memória da realidade'---"em suportes objectuais" que a tornam ilimitadamente reutilizável, é verdade, mas que são, de igual modo, num certo sentido funcional directo muito preciso, muito... "cultu[r]al", "limitadamente objectuantes" na medida em que limitam---em que a sua utilização tópica limita; em que ela tende sempre, de um modo ou de outro, a aparecer associada a formas estáveis de utilização que limitam---os 'usos teóricos' do real fora daquele universo circunscritamente funcional que faz com o que em última instância define a nossa relação relação tópica com o real seja a prática de usá-lo continuamente reinvestido em si mesmo.

Ou seja: antes da invenção das formas de registo final, tecnologicamente inargumentáveis, das imagens que somos capazes de produzir ou de gerar da realidade, era possível ao ser humano, à consciência do ser humano, reinventar autronomamente muita dessa realidade e investir nessa reinvenção formas de "criatividade emocional e e de inventiva afeccional" que desempenhavam, a meu ver, um papel particular central absolutamente relevante na construção final da identidade cognitiva mas, de igual modo, afectiva ou afeccional.

Antes da introdução do video, por exemplo, os filmes [e os rostos, as circunstâncias, a imagética dentro deles] mesmo com cinemas chamados "de reprise" disseminados pelo nosso universo institucional e cultu[r]al, eram, em regra, vistos uma vez e reinventados subsequentemente na [sub] consciência um número teoricamente ilimitado de vezes até, muitas vezes, se perderem eles mesmos por inteiro da sua "identidade" própria, devorados que eram pela memória que deles tínhamos a fim de servirem de "alimento construcional" à nossa própria identidade.

Um processo em tudo análogo ao que ocorria no âmbito mais demonstravelmente intelectualizado da formação de conceitos, por exemplo, matemáticos antes da introdução das calculadoras no domínio da do/discência e, por conseguinte, da formação de consciência ou de consciencialidade objectiva---calculadoras eesas que permitem operar elisões angulares, verticiais, "sobres/saltos epistemeoformes" na nossa relação cognitiva e operativa imediata com o real e, portanto, também, noutro plano mais estável e inteleccionalmente identitário, na nossa maneira de perceber e auto/representar autonomamente, digamos assim, aquele mesmo real.

Ou ainda, noutra fase, com os computadores e a nossa capacidade cada vez mais reduzida de perceber abstractamente formas no espaço, i.e. de pensar com espacializações puramente críticas, instintivas ou instintuais, do próprio real.

Ou seja: todas as formas de "objectuar terminalmente" o real que são um traço dominante e tópico da nossa época mental surgem para reduzir a nossa própria capacidade educável para "subjectuá-lo" quer afectiva ou afeccional quer crítica ou, como prefiro dizer, de um modo mais amplo, criticionalmente mas, igual modo, para funcionalizá-la limitando a nossa aptidão natural para produzir o que, de novo com recurso a um léxico para-linguístico, gerar autonomamente "afectemas" ou "afeccionemas" com os quais, para o bem e para o mal, pensávamos topicamente ainda não há muito tempo mental e crítico---ou "criticional".

Era infiáveis muitas dessas imagens abstrctas que gerávamos do real?

Eram-no demonstravelmente: quantos filmes re/vi eu de um mesmo filme, na infância.

Mas o que eu quero dizer é que a possibilidade tecnologicamente sustentada de não fazê-lo não configura, por si só, um bem e que no nosso mundo 'tecnologicamente categórico' de hoje grande parte das tarefas de "revolução" e de "re-humanicização" passam por tentar não amputar a identidade do seu património original em matéria de "imaginação afeccional"---algo que constitui, em meu entender, em si mesmo, algo de absolutamente essencial no processo filogénico de "individuação funcionante" ou "filo-funcionante" onde se origina, em última instância, a própria identidade como "dado ou objecto natural".

E aqui surge o segundo texto, aquele ["O excêntrico que precisa da fama para viver"] em que Filipe Escobar de Lima fala do futebolista Maradona comparando-o a Pelé, outro jogador de futebol, brasileiro esse.

De Maradona, diz o autor, possuimos toda uma parafernália de imagens que nos permitem ver o que o futebolista realmente fez.

De Pelé, diz, muito pouco: Pelé foi um homem e um futebolista de uma era anterior à nossa era tecnológica em que a memória que possuíamos/construíamos das coisas era ainda, em larguíssima medida, no caso dele, "artesanal" e [utilizo aqui o termo com total intencionalidade!] "livre" e por isso se tornou num mito.

Uma era afeccionalmente fecunda---e criticionalmente [volto a dizer: para o bem e para o mal] "livre" que permitiu que o que hoje se "sabe" de Pelé seja, em larga medida, o mito que em torno dele construímos e que vamos, a cada novo dia [e a cada novo jogador que surge] reacomodando continuamente de acordo com a nossa vontade---ou, como diria um psicanalista, com o desejo.

Aplicamos aí ainda o modelo de "pensar mitogénico" que informou o modelo tradicional informal ou total e "transversante" de História ou de historicidade popular a partir do qual construímos ainda hoje, pois, os modelos da nossa historicidfade simultaneamente "objectiva" e "científica".

Uma 'era tecnológica' é, por definição, uma era não apenas sem identidade ou com a identidade [e os mecanismos geradores de identidade] amputados de uma parte significativa de si---um não-Tempo ou um não-lugar no tempo cultu[r]al---mas, de igual modo e por essa mesma razão, sem verdadeiros mitos.

Ou com os mitos---até esses---impostos: primeiro, pela tecnologia e pelo tipo de pensar tópico que ela introduziu na sociedade e, em seguida, pela Política de que a Tecnocracia se serve exactamente para introduzi-lo---e impô-lo.


[Na imagem: Salvador Dali, "O Nascimento da Filosofia" extraído, com, a devida vénia, de]

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