Há um conceito e uma expressão que me parece absolutamente indispensável que tenhamos presentes em todas as nossas reflexões envolvendo a abordagem crítica do mundo em que vivemos a fim de bem compreendermos precisamente o que em nosso redor vai nele acontecendo em matérias hoje-por-hoje tão cruciais como a economia e a própria política---conceito esse que é o de "sociedade inversional" e que uma recente intervenção do sociólogo António Barreto no contexto de uma palestra realizada em Coimbra subordinada ao tema "Desenvolvimento Regional de Cidadania" ilustra na sua perturbadora e disfuncionalíssima perfeição.
Quero começar por adiantar que não estive presente na palestra em causa, dela só tendo conhecimento pelos jornais e para reconstituir o essencial das reflexões aí produzidas---aquilo que delas circunstancialmente me interessa e que se resume, como adiante veremos, a uma frase---socorro-me da notícia publicada em 29.08.10 pelo "Diário de Notícias".
Não é tão-pouco por se tratar propriamente de opiniões originais e de posicionamentos críticos inéditos [estamos, na realidade, bem longe de qualquer ineditismo ou originalidade nesta matéria, como veremos!] que aqui trago a referência concreta à palestra de Coimbra---constituindo antes o facto de ela ter tido lugar, o de ter ocorrido neste preciso momento e cumulativamente o de ter sido objecto de tratamento mediático específico, expresso e autónomo, aquilo que lhe confere a relativa importância que aqui, neste contexto, lhe atribuo.
Estou a falar da ideia, segundo o jornal aí veiculada pelo palestrante, de que existem "direitos a mais na Constituição" portuguesa, sendo que o conjunto dos direitos aí consagrados desde '75, deveriam ser seriados segundo níveis ou graus de prioridade ou de prioritarização perfeitamente demarcados e distintos---que é, como quem diz: recategoriados segundo a sua importância relativa.
Claro que isto levanta logo à partida um problema: admitido como hipótese de trabalho, o princípio em si [e até se pode admitir] quem ou o quê vai, imediatamente a seguir, redefinir a questão da importância dos diversos direitos que a Constituição prevê?
E como?...
A avaliar pela proposta que, sempre segundo o jornal, o palestrante adiantou no decurso da sua exposição, o mínimo que se pode dizer é que, por este caminho, se calhar... "estamos bem servidos".
Porque, para Barreto, com efeito, direitos como o "direito à privacidade, à integridade humana individual, direito à boa reputação, de voto, de expressão [ou] de circulação" revestem-se de uma importância relativa superior ["revestem-se", diz ele, de um "nível" diferente de "inviolabilidade"] dos "outros", ficando, segundo ele, dependentes da sua eventual compatibilidade "com o estado das finanças públicas".
Dos "outros" que são, segundo Barreto, a fazer fé no jornal, o "direito à saúde e educação de graça" e "à habitação" direitos aos quais se poderia juntar um outro, essencial, que é o direito ao trabalho.
Acontece que, numa sociedade como aquela em que vivemos---e que não por acaso ostenta a designação [muitas vezes, pudicamente omitida, é verdade...] de "capitalista"...---as duas únicas formas demonstráveis de propriedade que existem são a do próprio capital [usado por quem a detém basicamente para produzir mais capital] ou a do trabalho que é utilizada por quem não teve acesso à modalidade anterior, para investir colateralmente nessa mesma produção de capital.
Mas essa é uma forma de propriedade caracterizada em última análise, pelo facto de dela não se gerar secundariamente capital, ou seja, por nunca sofrer em condições nornais de funcionamento do sistema em que está inserida o tipo de "mutação final significada" que leva o próprio capital a objectuadamente replicar-se e multiplicar-se em mais capital, desde logo na forma de um "lucro".
A propriedade do trabalho nunca por si só dá origem a outra coisa que não a propriedade dela própria: é uma propriedade meramente instrumental em si mesma inerte do ponto de vista do acesso que não dá a quantos a detêm aos mecanismos verdadeiramente determinantes no contexto do processo de re/produção contínua de capital.
Na realidade, representa para quantos vêem limitada a essa modalidade a propriedade de qualquer coisa que permita aos indivíduos alimentarem-se, vestirem-se e adquirirem formas reconhecíveis de conhecimento, no contexto do modo como estão organizadas em geral as sociedades modernas; na realidade, dizia, representa para esses o direito à própria vida.
Secundarizar ou desprioritarizar o direito ao trabalho fazendo-o depender de uma qualquer ideia, puramente política, de comptabilidade ou mesmo apenas de simples compatibilização com "o estado das finanças públicas" equivale, pois, na prática a desproritarizar o próprio direito à vida para os não-detentores da propriedade do capital.
Ora, é justamente nisso que consiste, tal como a vejo, a in/essência da sociedade a que chamo 'inversional', mas a que poderia também chamar, tendo em vista certos aspectos específicos, concretos, que da situação anterior directamente decorrem, por 'inorgânica'.
É 'inversional' pelo facto de ela conceber, representar e inclusive institucionalizar na prática a "política" como uma mera 'variável funcionante' e/ou 'possibilitante' no quadro de uma relação que é não apenas estável como, sobretudo, tópica com um determinado modelo económico e de propriedade específico que, por seu turno, nesse mesmo quadro, opera como a verdadeira âncora e/ou única constante sistémica.
E é "inorgânica" porque, desligando ou pretendendo, como é o caso da palestra que comecei por referir, que seja desligada a propriedade e o respectivo uso sistémico, da sua aptidão natural para assegurar em termos objectivos o direito básico à vida, torna uma parte cada vez maior dessa mesma sociedade---à medida que ela vai integrando níveis mais avançados de tecnologia na forma de capital constante: máquinas---não apenas dispensável como inclusive no limite indesejável.
Quando, com efeito, se diz que é o estado das finanças públicas que deve determinar [e ser institucionalizado que assim seja mexendo, de forma expressa e directa, senão na letra, seguramente no espírito do texto constitucional] se os indivíduos se alimentam e se vestem todos os dias ou apenas podem fazê-lo quando as finanças públicas, mantendo inalterado o paradigma proprietário ou modelo proprietacional vigente, equivale, na prática [não vejo, aliás, francamente, como possa concluir-se outra coisa!] a defender que o direito à vida pode e deve ser objectivamente desprioritarizado em relação por exemplo a um em si mesmo dificilmente definível e [em muitos casos, aliás, francamente questionável nessa forma lata, absoluta ou absolutiforme] "direito à privacidade".
Não se percebe [eu seguramente não o percebo!] como pode um abstractíssimo direito à privacidade prevalecer sobre o direito a um indivíduo, a um cidadão, em pleno século XXI, abrigar-se do calor e do frio.
Aliás, não me parece francamente difícil de ver como o direito à habitação constitui, em si mesmo, uma concretização evidente do próprio direito à privacidade, para além, obviamente daqueles aspectos mais práticos embora naturalmente essenciais da protecção física dos seres humanos relativamente aos elementos.
Mas, insisto: é preocupante que se retire à propriedade do trabalho e ao direito que a envolve o seu vínculo orgânico à própria capacidade objectiva dele para gerar subsistência para os indivíduos concebendo-o, a esse direito, como algo que se pode ter ou não ter e portanto à própria subsistência que do trabalho deriva o estatuto, em termos civilizacionais, intolerável de algo que se pode, por sua vez, desligar da própria condição cidadã.
A menos que a esta proposta de 'desprioritarização estratégica', ou 'funcional', chamemos-lhe assim, de direitos com os quais o "estado das finanças públicas" pode, pontualmente ou não, conflituar de forma directa, se juntasse uma outra de alargamento proporcional do que chamo o fenómeno da "des-salarização complementar" [subsidiação] das camadas sociais e económicas---dos indivíduos, das classes---que o sistema económico-financeiro deixou de saber, querer ou poder integrar de forma permanente e orgânica.
Quero começar por adiantar que não estive presente na palestra em causa, dela só tendo conhecimento pelos jornais e para reconstituir o essencial das reflexões aí produzidas---aquilo que delas circunstancialmente me interessa e que se resume, como adiante veremos, a uma frase---socorro-me da notícia publicada em 29.08.10 pelo "Diário de Notícias".
Não é tão-pouco por se tratar propriamente de opiniões originais e de posicionamentos críticos inéditos [estamos, na realidade, bem longe de qualquer ineditismo ou originalidade nesta matéria, como veremos!] que aqui trago a referência concreta à palestra de Coimbra---constituindo antes o facto de ela ter tido lugar, o de ter ocorrido neste preciso momento e cumulativamente o de ter sido objecto de tratamento mediático específico, expresso e autónomo, aquilo que lhe confere a relativa importância que aqui, neste contexto, lhe atribuo.
Estou a falar da ideia, segundo o jornal aí veiculada pelo palestrante, de que existem "direitos a mais na Constituição" portuguesa, sendo que o conjunto dos direitos aí consagrados desde '75, deveriam ser seriados segundo níveis ou graus de prioridade ou de prioritarização perfeitamente demarcados e distintos---que é, como quem diz: recategoriados segundo a sua importância relativa.
Claro que isto levanta logo à partida um problema: admitido como hipótese de trabalho, o princípio em si [e até se pode admitir] quem ou o quê vai, imediatamente a seguir, redefinir a questão da importância dos diversos direitos que a Constituição prevê?
E como?...
A avaliar pela proposta que, sempre segundo o jornal, o palestrante adiantou no decurso da sua exposição, o mínimo que se pode dizer é que, por este caminho, se calhar... "estamos bem servidos".
Porque, para Barreto, com efeito, direitos como o "direito à privacidade, à integridade humana individual, direito à boa reputação, de voto, de expressão [ou] de circulação" revestem-se de uma importância relativa superior ["revestem-se", diz ele, de um "nível" diferente de "inviolabilidade"] dos "outros", ficando, segundo ele, dependentes da sua eventual compatibilidade "com o estado das finanças públicas".
Dos "outros" que são, segundo Barreto, a fazer fé no jornal, o "direito à saúde e educação de graça" e "à habitação" direitos aos quais se poderia juntar um outro, essencial, que é o direito ao trabalho.
Acontece que, numa sociedade como aquela em que vivemos---e que não por acaso ostenta a designação [muitas vezes, pudicamente omitida, é verdade...] de "capitalista"...---as duas únicas formas demonstráveis de propriedade que existem são a do próprio capital [usado por quem a detém basicamente para produzir mais capital] ou a do trabalho que é utilizada por quem não teve acesso à modalidade anterior, para investir colateralmente nessa mesma produção de capital.
Mas essa é uma forma de propriedade caracterizada em última análise, pelo facto de dela não se gerar secundariamente capital, ou seja, por nunca sofrer em condições nornais de funcionamento do sistema em que está inserida o tipo de "mutação final significada" que leva o próprio capital a objectuadamente replicar-se e multiplicar-se em mais capital, desde logo na forma de um "lucro".
A propriedade do trabalho nunca por si só dá origem a outra coisa que não a propriedade dela própria: é uma propriedade meramente instrumental em si mesma inerte do ponto de vista do acesso que não dá a quantos a detêm aos mecanismos verdadeiramente determinantes no contexto do processo de re/produção contínua de capital.
Na realidade, representa para quantos vêem limitada a essa modalidade a propriedade de qualquer coisa que permita aos indivíduos alimentarem-se, vestirem-se e adquirirem formas reconhecíveis de conhecimento, no contexto do modo como estão organizadas em geral as sociedades modernas; na realidade, dizia, representa para esses o direito à própria vida.
Secundarizar ou desprioritarizar o direito ao trabalho fazendo-o depender de uma qualquer ideia, puramente política, de comptabilidade ou mesmo apenas de simples compatibilização com "o estado das finanças públicas" equivale, pois, na prática a desproritarizar o próprio direito à vida para os não-detentores da propriedade do capital.
Ora, é justamente nisso que consiste, tal como a vejo, a in/essência da sociedade a que chamo 'inversional', mas a que poderia também chamar, tendo em vista certos aspectos específicos, concretos, que da situação anterior directamente decorrem, por 'inorgânica'.
É 'inversional' pelo facto de ela conceber, representar e inclusive institucionalizar na prática a "política" como uma mera 'variável funcionante' e/ou 'possibilitante' no quadro de uma relação que é não apenas estável como, sobretudo, tópica com um determinado modelo económico e de propriedade específico que, por seu turno, nesse mesmo quadro, opera como a verdadeira âncora e/ou única constante sistémica.
E é "inorgânica" porque, desligando ou pretendendo, como é o caso da palestra que comecei por referir, que seja desligada a propriedade e o respectivo uso sistémico, da sua aptidão natural para assegurar em termos objectivos o direito básico à vida, torna uma parte cada vez maior dessa mesma sociedade---à medida que ela vai integrando níveis mais avançados de tecnologia na forma de capital constante: máquinas---não apenas dispensável como inclusive no limite indesejável.
Quando, com efeito, se diz que é o estado das finanças públicas que deve determinar [e ser institucionalizado que assim seja mexendo, de forma expressa e directa, senão na letra, seguramente no espírito do texto constitucional] se os indivíduos se alimentam e se vestem todos os dias ou apenas podem fazê-lo quando as finanças públicas, mantendo inalterado o paradigma proprietário ou modelo proprietacional vigente, equivale, na prática [não vejo, aliás, francamente, como possa concluir-se outra coisa!] a defender que o direito à vida pode e deve ser objectivamente desprioritarizado em relação por exemplo a um em si mesmo dificilmente definível e [em muitos casos, aliás, francamente questionável nessa forma lata, absoluta ou absolutiforme] "direito à privacidade".
Não se percebe [eu seguramente não o percebo!] como pode um abstractíssimo direito à privacidade prevalecer sobre o direito a um indivíduo, a um cidadão, em pleno século XXI, abrigar-se do calor e do frio.
Aliás, não me parece francamente difícil de ver como o direito à habitação constitui, em si mesmo, uma concretização evidente do próprio direito à privacidade, para além, obviamente daqueles aspectos mais práticos embora naturalmente essenciais da protecção física dos seres humanos relativamente aos elementos.
Mas, insisto: é preocupante que se retire à propriedade do trabalho e ao direito que a envolve o seu vínculo orgânico à própria capacidade objectiva dele para gerar subsistência para os indivíduos concebendo-o, a esse direito, como algo que se pode ter ou não ter e portanto à própria subsistência que do trabalho deriva o estatuto, em termos civilizacionais, intolerável de algo que se pode, por sua vez, desligar da própria condição cidadã.
A menos que a esta proposta de 'desprioritarização estratégica', ou 'funcional', chamemos-lhe assim, de direitos com os quais o "estado das finanças públicas" pode, pontualmente ou não, conflituar de forma directa, se juntasse uma outra de alargamento proporcional do que chamo o fenómeno da "des-salarização complementar" [subsidiação] das camadas sociais e económicas---dos indivíduos, das classes---que o sistema económico-financeiro deixou de saber, querer ou poder integrar de forma permanente e orgânica.
Sem comentários:
Enviar um comentário