Surpreendo-me [e encho-me fundada inquietação] quando mesmo o que resta das "elites mentais" nacionais se recusam a ir além de uma visão [e, na base dela, de um des/entendimento] exclusivamente fenoménico e casuístico--inorgânico---dos problemas que, como sociedade, nos afligem.
Ou melhos: que não afligem propriamente---mas que deviam, em qualquer caso, afligir; que seria , seria saudável que, pelo menos, aligissem...
Como o problema da Educação, em Portugal, hoje.
Num texto da "Visão" de 18.03.10, José Gil [um dos 'portugueses pensantes' mais reputados e hoje-por-hoje mais apreciados e citados abordando o problema da "violência da ignorância": título do artigo] atribui à "«demissão dos pais» conjugada com "a próptria violência que atrai os adolescentes" conjugadas ambas, por sua vez, com a "progressiva desagragação da autoridade dos professores" e "uma política laxista e ignorante do que é ensinar e educar, feita mais para reduzir as despesas do Estado e facilitar a vida aos pais do que para formar e transmitir connhecimento aos filhos".
Ora, sendo tudo isto verdade, é também verrdade que não configura na realidade mais do que uma espécie de inventário puramente sintomático e casuístico de evidências a que falta o respectivo motor.
A respectiva chave.
Falta [lá está!] a isto diria eu um olhar orgânico que permita perceber efectivamente a mecânica da emergência histórica, social ne política destes "sintomas".
E essa há que, como tantas vezes tenho aqui e noutros lugares repetido, há que buscá-la na questão nuclear dos usos económicos e políticos---civilizacionais, até, se quisermos assim dizer porque também é, no limite, disso que se trata: de todo um paradigma "civilizacional"; dos usos materiais, históricos e políticos, do saber.
Ora, essa "chave" há que procurá-la no fenómeno económico-político [e civilizacional, pronto!] da esquizofrenia estável e tópicab que os mecanismos característicos de re/produção de capital introduziram no conceito tradicional de conhecimento e, por natural extensão, nos modos de aceder a esse conhecimento, da Revolução Industrial para cá.
Do século XIX industrial até aos nossos dias, com efeito, o fenónemo a que designamos vulgarmente por Revolução Industrial caraqcterizou-se [qualquer aluno mediano do 11º ano o sabe] por um processo de encosing fundiário que [é essa a minha tese] não se restringiu às terras de cultivo, como geralmente se afirma.
A dado passo, com efeito, deixou de ser rentável---deixou de ser material e objectivamente possível---"continuar a produzir capital" sem levar esse processo de "enclosing" até ao domínio, daí em diante, chave do conhecimento.
Dos modos de aceder a representações directas da realidade e de transformá-las em capital.
A concorrência capitalista a isso naturalmente obrigou.
Aliás, tudo isto estava já, de algum modo bem claro, 'previsto' na Revolução Francesa que marca o início do poder e da ordem burguesas no Ocidente.
Ora, a fim de legitimar social e politicamente, esse poder, esse movimento de apropriação estável da História, que alega a burguesia?
Exactamente que tem a chave [que a classe aristocrática deixou de deter] para transformar a realidade em capital: o conhecimento.
A aristocracia tinha a terra que serviu [desigualmente e, de vários outros modos, mal mas serviu] na forma de uma economia e, em geral de uma sociedade agrária ou agrocêntrica e agrocentrada, que durante séculos bastou para alimentar a comunidade humana mas que, a dado paso, se tornou demasiado insuficiente mas, sobretudo, demasiado deficiente e disfuncional para cumprir esse objectivo.
A dado momento da sua História, com efeito, a História "encalhou em si própria e bloqueou" pela sua economia---pelos modelos de economia utilizados e pela incapacidade da classe dominante até então redistribuir com um mínimo de justiça os produtos obtidos e a propriedade onde o eram, i.e. a História "fechou" [foi levada a "fechar"] por uma ideia de economização do real que confiava basicamente na estabilidade e na "generosidade" da natureza [e na força militar da classe dominante para gerir os mecanismos de distribuição da riqueza a partir dela produzida].
É então que uma nova classe emerge com o poder que lhe confere o conhecimento dos modos de obter ulteriormente riqueza[s] a partir da transformação da realidade em "valor" na forma de uma tecnologia para onde todo o saber essencial passou a ser daí em diante canalizado e concentrado.
A nova classe justificava a apropriação política da História que a Revolução Francesa lhe permitiu justamente com a propriedade daqueles meios de transformar o real em "valor", meios esses que incluiam, aliás, dizia-se também, a possibilidade de produzir mais barato e, por conseguinte, em tese, pelo menos, de acessibilizar [e até de "democratizar" ulteriormente] a riqueza produzida.
Não apenas produzir mais e melhor: produzir mais barato, também, através, por exemplo, da inclusão nas componentes da produção do que Marx chamava o capital constante: as máquinas.
A própria dinâmica concorrencial indissociável do novo paradigma de «economicização da realidade» [e, num plano mais abstracto, da História] acabou por fazer com que o conhecimento se tornasse, a prazo, ele próprio, numa matéria-prima básica de capital ou, se assim se preferir dizer, num proto-capital que, em certas condições particulares, se transformava naturalmente em capital tout court.
É por isso, aliás, que o novo sistema se chamou "capitalismo": porque a partir de dado momento, a única coisa que ele produz realmente é capital.
Ele não produz já nem de facto nem de direito, riqueza social: produz porque reproduz continuamente capital.
Os objectos que dele são gerados podem ser ser entendidos como um mero subproduto inerte do "fabrico de capital".
Seja como for, o que interessa aqui perceber, neste momento, é como opera, como se integra, o saber na sociedade capitalista: como uma propriedade que não pode ser democratizada sem que todo o sistema deixe automaticamente de ser possível: porque o novo paradigma de produção implica na base um outro tipo de produção indispensável: a de "escassez possibilitante" ou carencialidade estratégica" que é de onde emerge realmente o "valor" na sociedade capitalista.
A água e o próprio ar, os alimentos, etc.---tudo, numa palavra---só se transforma em "valor" quando deixa de ser imediada e directamente acedido pela sociedade no seu todo.
E o mesmo se passa com o saber e é por isso que existe todo um Direito que funciona hoje, numa sociedade fortemente abstractizada e abstraccional onde antes funcionavam as "fences" e as "hedges" físicas: enclosing aquilo que é preciso que "estrategicamente" escasseie como pressuposto ou condição para que o respectivo "valor" possa emergir.
Ora, esta privatização sistémica do conhecimento conduz naturalmente a um fenómeno de polarização completamente desigual do saber cujo núcleo capaz de seguir gerando capital é privado e apenas as formas inertes são cedidas à sociedade, desde logo, na forma de um conhecimento escolar, designadamente de natureza pública.
E é isso que conduz a toda aquela fenomenologia que José Gil descreve e enumera no seu artigo: quando a propriedade do conhecimento se torna social e politicamente, em termos gerais, inútil [in-útil] e já não representa sequer um símbolo abstracto de estatuto social [como aconteceu entre nós durante o fascismo em que uma sociedade fortemente pré-tecnológica utilizava socialmente o saber e as formas materiais de representá-lo---os diplomas, os célebres "canudos"...---como um código em si independente dos usos específicos do saber que lhe servia suporte pretextual a esse código primariamente simbólico; quando assim acontece, dizia, é inevitável que a autoridade efectiva de quem continua a desempenhar uma tarefa que ninguém reconhece já, de facto, como necessária entre em crise e, a prazo, se desintegre por inteiro, como está a suceder.
O próprio poder político [para além de uma incompetência que parece, de facto, uma fatalidade endógena no domínio da Educação---onde vêm, com efeito, invariavelmente desaguar nulidades algumas delas, é preciso reconhecer, dificilmente descritíveis...] não sabe exactamente como passar a batata quente de uma "Educação" que as empresas não estão dispostas a pagar [na forma de impostos, desde logo] porque não têm, hoje-por-hoje já, qualquer utilidade para o tipo de "produção" que continua a sair da "linha-de-montagem" escolar tradicional [sobretudo, nos níveis básico e secundário e nas quantidades em que este continua imperturbavelmente a pôr no mercado essa sua "produção" e é aqui que entra a tal ideia de "reduzir as despesas do Estado" de que fala José Gil] e a própria sociedade apenas aceita ir subvencionando porque lhe fornece asilo material para os filhos ["facilita a vida aos pais", observa José Gil]; filhos esses que, de qualquer modo, parecem, na sua esmagadora maioria, com escola ou sem escola, fadados para o desemprego.
Mas o que é essencial perceber em todo este processo é que não estamos perante qualquer episódio avulso ou simples 'crise' de autoridade ou ainda do resultado circunstancial da incompetência deste ou daquele ministro: a questão é de fundo.
É do modo como o sistema económico-político sob o qual vivemos se relaciona tópica e, de facto, necessariamente, por um lado, com os "meios de produção de imagens tópicas da realidade" [com o Conhecimento] e, por outro, com o conjunto da sociedade, vista não como o horizonte último da própria História mas como um mero instrumento no processo em si de transformação da realidade em "valor", na forma, puramente variável e efectivamente inorgânica, de um mercado.
A indisciplina e a violência escolares elas mesmas perderam hoje o seu carácter natural e a sua natureza intrínseca de questões pedagógicas no sentido preciso em que não perturbam já a eficácia da própria Pedagogia ou se a perturbam o caso não tem verdadeiro significado pedagógico porque a produção pedagógica não é, como atrás vimos, aproveitada pelo paradigma económico e producional.
Por isso se repetem com tanta frequência que passam a meros casos de polícia que um ministério caracteristicamente cobarde e inepto nunca deixa que efectivamente sejam, preferindo fingir que acredita que tudo "aquilo" é ainda Escola e Educação...
Mas numa verdadeira Escola não existem problemas "disciplinares": ou existem problemas pedagógicos no exacto sentido em que perturbam o bom funcionamento de uma Pedagogia [e de uma Didáctica] que, sem eles, funcionariam, em termos globais, idealmente ou não existem problemas porque os seus causadores são ou efectivamente corrigidos no interior do próprio sistema educativo ou afastados.
É por isso que eu digo que numa verdadeira Escola não há problemas disciplinares: ou permanecem pedagógicos e se resolvem pedagogicamente antes de passarem a [ou, pelo menos, de se consolidarem como] "disciplinares", deixando de ser problemas---ou não se resolvem e os seus causadores são afastados do sistema que, assim, pode funcionar com ideal normalidade.
Que, no caso da Educação, é aquela que Educa e/ou emprega e não a que se limita a ter "interiormente arrumadas" populações inteiras de indivíduos jovens aos quais não sabe efectivamente o que fazer estando, apesar disso e por outro lado, impedida [por imperativos de tradição e/ou popularidade dos partidos no poder] de afastar.