Diz-me a minha formação académica nessa área e diz-mo a experiência que adquiri observando e ensinando que uma língua é basicamente um sistema e/ou um organismo em si, antes de ser qualquer outra coisa: de facto, ela possui uma ecologia própria e opera essencialmente como um mecanismo que reage consigo próprio de um modo [e segundo uma lógica muito própria, muito específica]; segundo, como diria Kant, uma "razão" muito própria, muito particular, que se "explica", em última análise, pelo modo como a língua ecoa sistemicamente o meio exterior e que, nesse mesmo modo, muito concretamente se fundamenta enquanto 'coisa' ou 'objecto'.
A lógica e o próprio sentido da língua A, B ou C [de qualquer língua, de facto] vêm-lhe dessa capacidade própria para ajustar-se continuamente ao mundo exterior e integrar cada um desses mesmos contínuos ajustes em si, re-formando-se e, muitas vezes, reinventando-se continuamente a partir deles e da necessidade de a eles proceder.
De Saussure disse-o: uma língua não possui qualquer espécie de lógica imanente própria: não é um objecto natural enquanto conteúdo de si própria.
Sê-lo-á [objecto natural] enquanto---e apenas enquanto!---atributo biológico e filogénico da espécie mas, repito, apenas nesse sentido e nessa medida.
O sentido chega à língua como o "significado" ou a "significação" para a "vida" chega à consciência: como uma construção estritamente cultural, "regional" e até pessoal.
O que Ferdinand de Saussure propõe é o "existencialismo linguístico", uma espécie de translação coperniciana nos modos tradicionais de concebver a linguicidade aplicada ao uso da fala humana.
Nesse sentido, o que em termos genéricos se seguiu a de Saussure foi o ateísmo linguístico a que pretendem opor-se os revisionistas ou neo-metafísicos da linguística de que o famigerado "Acordo Ortográfico" opera como uma manifestação avulsa, gratuita, inorgânica e completamente absurda.
Isto não quer obviamente dizer que as línguas não possuam uma essência e uma identidade mais ou menos sistemicamente estabilizadas: quer dizer que tentar aprisionar de uma forma que transcende, de modo completamente desfuncional, a experiência ou a experieciação linguísticas é algo que não possui em si mesmo qualquer sentido linguístico.
Uma língua não se constrói por decreto: quando muito des-constrói-se e des-funciona-se desse modo.
Uma língua constrói-se na relação directa conm o meio geográfico, cultural, etc.
A única bitola correcta de evolucionalidade linguística é essa, situa-se aí: na relação dela com o meio e no modo ou modos como ela expressa sistemicamente essa relação, esse "rapport" directo verdadeiramente determinante e fundamental com o respectivo "chão epistemológico".
Aquilo que o "Acordo" pretende é legislar sobre a própria respiração natural da língua que é esse rapport com a geografia e com a cultura, impondo-lhe "leis" que vêm "à antiga", de fora do universo ou da ecologia naturais da língua.
É regressar ao essencialismo linguístico e à visão da língua como uma "liturgia" ou uma "metafísica do pensar", "torcendo-a" a partir da sua própria personalidade epistemológica a fim de poder caber" num conceito autoritário prévio, completamente dis- e des-funcional, in/essencialmente anti-científico, de idiomaticidade.
É esta concebida como se a História não existisse e a Cultura não passasse de mera ficção e acessório im/puramente insubstantivo e no fundo gratuito das sociedades humanas.
[Imagem extraída com a devida vénia de dubroom-dot-org]
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