segunda-feira, 21 de junho de 2010

"Saramago: A Morte como Acto de Cultura e Inteligência"


Foi a enterrar José Saramago cujo derradeiro acto in corporis terá sido o de a sua morte ter constituído [como em muitos momentos, o fora, de igual modo, a própria vida] um acto de lucidez e de inteligência---de clarividência, mesmo.

O funeral [a que por deliberação pessoal não estive presente---falarei, talvez disso, noutro lado e noutro momento] permitiu, com efeito, que viessem à luz, isto é, que se manifestassem e se contrapusessem mesmo [talvez---na melhor das hipóteses---dialecticamente] dois ou três dos vários Portugais [e sub-Portugais] existentes que mais peso têm na sociedade lusa actual e que mais fortemente contribuem para que ela tenha chegado a ser o que é hoje mas, sobretudo, que ela nunca tenha logrado chegar a ser o que podia ter sido.

Falo do Portugal da [verdadeira porque independente: da verdadeira porque resistentemente independente!] Cultura; o Portugal que permanece capaz de sonhar e de comer... "pão com azeitionas e beber água do poço simples" ["donde hay vino, bebe vivo, donde no hay vino agua fresca", escreveu Machado] para poder comprar livros, ir ao Cinema, visitar museus ou fazer Teatro [vi na Estrela a Maria do Céu Guerra a representá-lo e foi um pau...] e, ao seu lado... "looking characteristically down on him", aperaltado, vestido exterior e interiormente para o "vernissage das falsas emoções e da dor levada à cena num teatro", como escrevia Natália, o Portugal-Casino do Estoril, o Portugal-saíu-me-um-cursozinho-muito-jeitoso-na-barraca-das-panelas-da-Feira-Populara-ah-e-li-uma-vez-um-livro-e-vi-uma-vez-um-filme-mas-vou-todos-os-anos-ao-Quénia-e-nunca-perco-um-estágio-da-selecção...

...E esteve, também... presente pela ausência um outro ainda, um terceiro Portugal, sombrio e cinzento, cheio de bolor e sempre em "recatado rumor externo de santidade", rumor esse que o faz, aliás, instintiva e consistentemente retrair-se perante a inteligência [teme-a! Fá-lo parecer quase humano...]; o Portugal-calhau; o Portugal com-batatas-e-grelos comidos na festa do Pontal; o "Portugal alimado" e com bandeiras [e-Scolaris] à-janela; o Portugal-Dona-Qualquer-Coisa-mãe-do-Ronaldo; o País-Fernando Mendes-rei-de-Portugal-e-dos-alarves; o Portugal-curso-industrial-ou-comercial-tirado-à-noite [cujas capitais oficiais são, como se sabe, a Veiga Beirão e o Patriarcado de Lisboa, este último um franchising e um balcão local dessa verdadeira "Internacional das sombras", "banco e F.M.I. do obscurantismo e da intolerância mais extremos" que é a "mafia metafísica e moral"---metafísica imoral?...---da grande loja vaticana, legatária universal do espírito Torquemada e suas "sanbenitettes", isto é, os padres que pregam Fátima e mijam água benta]; o Portugal-Cerejeira que catequiza com a pila e que não quer perder o lugarzinho confortável arduamente conquistado [sabe Deus à custa de que abjecções, despudoradas concessões e, em geral, vilezas sortidas e a gosto, tipo "you-name-it-we've-done-it"] na bicha-dos-santos; o Portugal que decididamente continua a preferir [e, pior ainda, a santificar!] a punheta solitária e a enrabadela discreta atrás do altar ao Amor humano, limpo e são e/ou ao "horror apocalíptico do preservatico" para já não falar da "abominação imperdoável, teologicamente insustentável", da redução das pragas e das gravidezes e maternidades e paternidades perigosamente incompetentes...

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Como era inteligente e [felizmente!] provocador, tivesse-o de antemão sabido [quer dizer: saber, ele que não era parvo, estava fartinho de sabê-lo, claro!---Mas se tivesse podido confirmá-lo in corporis et in loco!]; como era inteligente e em geral espirituoso, dizia, Saramago, dando-se conta do tipo de patego pomposo e farfalhudo que esteve ostensivamente... presente faltando [ensurdecedoramente, aliás!] à "festa" teria podido exclamar: só para "os" ver assim "dar parte de fracos", estrebuchar e, de passo, testemunhar, de forma inequívoca, da sua incurável boçalidade, do seu casqueiro primarismo, da sua irregressível e campónia, militante intolerância, já começa a... "valer a pena" ter morrido!...

Valer, valer, nunca vale, claro; agora que apetece "como tudo", pensá-lo e dizê-lo, ai lá isso!...


[Imagem extraída com a devida vénia de crgpaes-dot-files-dot-wordpress]

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