Aqui há uns meses arás, o meu amigo e ex-colega, o dramaturgo Armando Nascimernto Rosa, deu à estampa uma daquelas suas "educadas profanações" que tão bem caracterizam a sua abordagem da realidade e a sua intervenção cultural através do Teatro, dessa vez envolvendo a figura de António José da Silva para cuja sessão de "leitura dramatizada" no Teatro Nacional D. Maria II teve a gentileza me convidar.
No animado debate que se sucedeu à leitura feita por actores da copmpanhia, recordo-me naturalmente de ter intervindo, tomando a liberdade de sugerir ao Autor uma espécie de sequela de um suposto ciclo temático iniciado com a peça sobre "o Judeu" [onde obviamente Armando Rosa via uma metáfora da ditadura salazarista] mas dessa possível segunda vez envolvendo outras formas de opressão e de abuso de poder incompatravelmente mais subtis, difusas e, por isso, também ulteriormente perversas: as que hoje-por-hoje, é difícil não ver que prevalecem nas sociedsades ditas "livres" ou até "democráticas".
As que envolvem os usos cultu[r]ais e políticos, sempre aparentemente "livres", do poder económico e do poder político que lhe confere nas sociedades usualmente chamadas, de forma fácil e acrítica, 'democráticas' suporte instrumental e institucional.
Não tenho dúvidas de que estas formas encontradas pelo poder para se consolidar e até legitimar nos nossos dias representam uma forma infinitamente mais perversa e perigosa de opressão cultu[r]al em geral do que as comparativamente primárias e rudimentares próprias das ditaduras.
Aquilo sobre que [ao contrário destas, que o faziam suportadas apenas na compulsão abertamente assumida] assenta o poder dito "democrático" comum é na mistificação---nessa forma subtilmente perversa de extrema alienação!---que consiste em envolver, directa e mesmo pessoalmente, o oprimido na sua própria opressão, através da manipulação cuidada do aparelho democrático formal [desde logo, as eleições] associada à gestão política, meticulosa e geralmente habilíssima, de "formas significadas" de agnosia mantidas estrategicamente activas na sociedades onde ele, poder, impera.
É isso mesmo o que define, aliás, a meu ver, na in/essência a pós-modernidade cívica, política e, em geral histórica: não apenas a perda de uma espécie de "centro crítico especular" por parte da sociedade [distribuído pelo conjunto de instituições do que chamo o Estado-consciência moderno] mas o próprio cultivo deliberado da ausência [as]sistémica desse centro na forma de uma espécie de difuso Zeitgeist onde o mito de uma liberdade absoluta ocupa um lugar simbólico verdadeiramente primário e determinante.
Na verdade era essa hábil e, volto a dizer: perversíssima transferência da repressão [do ódio à mudança] da força---das forças da repressão exógena aberta e assumida---para o próprio cidadão na forma completamente alienada de "desejo" e de "opção" própria que eu incitava o meu amigo Armando Rosa a abordar e a denunciar, com o humor agudo que caracteriza o seu teatro, numa espécie de "sequel témica" da sua peça sobre António José da Silva e a repressão inquisitorial/pidesca.
Porque é esse o traço dominante e tópico das formas pós-modernas de opressão e de repressão, o suporte [pós] ideológico do projecto deliberado de inorganicização estratégica das sociedades que há-de servir de base teórica fundamentante à desarticulação do Estado Social e, de uma forma mais ampla do próprio Estado como conquista civilizacional, conducente, no limite, não tenho mkuitas dúvidas, a uma "nova História" cujos contornos são, porém, hoje ainda impossíveis de prever em muitos aspectos.
E quem quiser entrar nessa "nova História" com um mínimo de preparação para lidar com as inevitáveis [e eventualmente radicais!] mudanças que ela há-de inevitavelmente trazer não tem mais do que antecipar já hoje, na Arte [no Teatro, seguramente!] todo um conjunto de educadas especulações em redor do que a nova História pode, em tese, vir a ser.
[Na imagem: "A História É Uma Substância [muito...] Flexível", colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado, da série "Colagem, Meus Bravos!" republicado de http://www.triplov.org/ ]
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