domingo, 21 de setembro de 2008

"Pós-modernidade" e "neo-modernidade"


Sendo, embora, particularmente difícil de precisar, o conceito de "pós-modernidade" (ou, como prefiro designá-la "neo-modernidade") contém, a meu ver, alguns aspectos mais ou menos estáveis e característos que são já, hoje, passíveis de identificação, de consideração específica e, sobretudo, de análise tendo em vista a precisão possível do conceito em causa.

Um desses aspectos (que é seguramente dos mais perigosos e, por esse motivo, mais indesejáveis) consiste, diria eu, na incapacidade persistente e, pior ainda, (des!) estrutural de as sociedades que compõem globalmente a "neo-modernidade" gerarem, a partir do seu próprio interior, da dinâmica ou das dinamias do seu "desenvolvimento" contínuo, massa crítica ou opinião (chamemos-lhe:) 'independente', capaz de, por seu turno, se concretizar numa qualquer forma de ideologia capaz da tarefa absolutamente essencial de realmente pensá-la.

De organizá-la dialecticamente em pensamento ou consciência minimamente reconhecível e geralmente aceite de si.

Capaz de se concretizar num olhar ideológico (ou mesmo apenas e muito menos formalmente, para-ideológico) susceptível de poder, por seu turno, vir a dar, como dissemos, origem a uma qualquer forma de "consciência" estável de si, nos termos daquela que foi a acção típica das "intelligentsias" tradicionais no "Ocidente".

Tradicionalmente, com efeito, as sociedades do tal "Ocidente" foram sempre, de um modo ou de outro (em meu entender, pelo menos) capazes de gerar vanguardas e/ou, por vezes, apenas formas de "contra-cultura significada" que, pela sua natureza interpelante e interactiva com o próprio núcleo característico do sistema ou da ordem podiam facilmente funcionar como a tal "consciência ínsita" ("inset consciousness") do próprio sistema de ordem, formal ou informalmente, 'estabelecido'.

Instituído.

Aconteceu assim, por exemplo, com uma certa poesia decadentista e marginal latina e continuou, de um modo ou de outro, a acontecer com globalmente ininterrupta regularidade, até ainda não há muito, com Émile Zola (basta recordar o "caso" "J'Accuse"), os surrealistas ou Sartre.

Cada um à sua maneira, com efeito, todos eles interpelaram aspectos relevantes, essenciais e também essenciantes (a intervenção simetrizadora das vanguardas demonsttra essa sua natureza dialecticamente essenciante enttretanto perdida: é a minha tese) da 'ordem estabelecida' e envolveram, em maior ou menor escala, as massas" na dissecação e na crítica dessa mesma ordem, alcançando aqui e ali mudanças de sinal histórico, social, político, civilizacional, etc. sem dúvida, importantes.

O meu ponto de vista é que a pós-.modernidade (e isso define-a, em meu entender, de modo perfeitamente reconhecível) "devorou", "engoliu" as respectivas elites, convetendo-as de "consciência" objectual do sistema em "justificação" formal desse mesmo sistema.

Em lugar de Zolas, Bretons e Sartres, temos hoje comentadores televisivos cuja acção política (a qual não pode, obviamente, da teoria de tácticas/estratégias partidárias e mesmo pessoais) é pelo próprio sistema usada, não para interpelar-se mas, pelo contrário, para "demonstrar-se" e conservar-se e para perpetuar-se. Para justificar-se e legitimar-se no plano meramente político-formal: se existe quem pareça pensar o sistema, então, o sistema deve admissivelmente pensar-se, isto é, provavelmente e ao que tudo indica, pensa.

Na realidade, o que sucede é que a sociedade "mediática" permitiu amputar democraticamenre o sistema da sua própria consciência.

Do mesmo modo como procedeu, por exemplo, para a "democracia": tradicionalmente a Democracia funcionou sempre como um capítulo da Política e, ao menos no plano dos desígnios teóricos e até utópicos, uma propriedade colectiva e independente dos povos.

Na "neo-modernidade" a "democracia" (re/convertida em im/pura "demomorfia instrumental"), engolida que foi, como atrás vimos acontecer com a própria consciência autónoma das sociedades em geral, foi chamada à tarefa falsamente "orgânica" e disfuncionalmente "integrada" de legitimar a sua própria base infrastrutural económica.

Na verdade, ela deixou de operar como um capítulo autónomo da Política para passar a funcionar, de facto senão de direito, como um capítulo im/puramente funcional e/ou meramente instrumental da Economia, destinado a justificar e a legitimar politicamente esta última com uma certa forma e um certo conteúdo precisos que o respectivo "revestimento demomórfico" amiude confundido com "Política" deve justamentre evitar que se altere.
Isto é: ao contrário daquilo que acontecia com a Democracia "antes de ser completamente engolida pela economia", ela é agora, para o sistema que a devorou, precisamente aquilo que prende o modelo económico infrastrutural à História, i.e., aquilo que deve evitar que o paradigma relacional solidamente estabelecido entre a "economia" e a História possa alterar-se.

Ou seja, ainda: por monstruoso e politicamente abominável que possa parecer, a "apropriação" tipicamente neo-moderna ("pós-ideológica") ocorrida entre a Economia (entidade apropriadora) e a Política (o elemento apropriado, passivo) conferiu à Democracia o papel histórica, política, e até civilizacionalmente aberrante (e opressor!) que outrora (no início, nas primeiras décadas do século XX, desde logo) esteve formalmente entregue à politicamente "musculada" e expressamente admitida, acção dos regimes políticos formalmente totalitários!

Para a neo-modernidade economocrata o revestimento político instrumentalmente "democrático" de que se serve não possui, de facto (nem, já agora, realmente de direito!), com o disse, qualquer independência efectiva relativamente à sua base económica: está-lhe, como também disse, desde logo, vedada possibilidade de alterar significativamente a História. Na verdade, o seu papel neo-moderno, como parte integrante e ancilar, estr(e)itamnte funcional, do paradigma economocêntrico e ecomomocrata em vigor, é monstruosamente conservador e mesmo abertamente reaccionário.

É por isso que eu digo, por exemplo, que o reconhecimento do direito à livre expressão do pensamento não constitui (longe disso!) por si só e em si mesmo, ao contrário daquilo que muita gente parece pensar um pressuposto sequer minimamente relevante de democraticidade. Embora ouçamos, com efeito, constantemente dizer que, "hoje, ao menos, os crimes e os abusos, económicos, políticos, etc. não ficam escondidos" e que, por exemplo, a imprensa desempenha, hoje, o papel "democraticamente essencial" de "ajudar" a democracia a consolidar-se, denunciando muitos desses crimes e abusos, a inexistência (gritante!) de mecanismos correctores efectivos que permitissem transformar realmente aquilo que, na realidade, não passa de um direito, em larguíssima medida "simbólico" e in/essencialmente "moral", num verdadeiro instrumento activo de prática democrática persiste e não deixa que a democracia passe de um vago e infixo projecto abstracto, como lhe chamei, in/essencialmente "moral", a autêntica Democracia.

Na verdade, o 'direito' em causa, desligado deste dispositivo ou conjunto de dispositivos realmente correctores das disfunções pode até configurar, no limite, um modo extremamente perverso de um sistema ser realmente anti-democrático, na medida em que a possibilidade de falar e de ver falados nos jornais, por exemplo, os referidos abusos pode contribuir para criar a ilusão, na realidade, ausente de Democracia.

Seria a existência dos referidos dispositivos correctores, tal como os descrevo noutro lugar, que impediria o espectáculo verdadedeiramente escandaloso da "demomorfia oscilatória" presene nos sistemas políticos objectivamente duais, bi-partidários, do "Ocidente".

Ainda há pouco eu lia um texto, aliás particularmente discutível em termos da (a) moralidade (política, desde logo, mas não apenas dessa forma de a/moralidade) que lhe subjaz, da autoria de Teresa de Sousa, inserto no "Público" de 11 de Setembro de 2008 ("Do 9/11 ao 8/8 ou como gerir o (relativo) declínio americano") onde se fazia uma espécie de breve balanço do verdadeiramente recente bushismo, agora (felizmente!) perto do fim de um tenebrosa vigência que parece nunca mais acabar. No texto em causa se relatam os contínuos desmandos de um mandato caraterizado pela brutalidade política, económica, jurídica, democrática, etc. mais extrema e repugnante.

Aí, também, se afirma ou se recorda como "a América" acabou por se ver compelida a moderar a sua, como é sabido muitas vezes sangrenta, "teoria do domínio" e da unilateralidade geopolítica, via que, imagina-se, deverá prosseguir, sobretudo se Obama for eleito como próximo presidente.

Na verdade, o que o texto de T. Sousa diz (e por isso lhe questionei e questiono o substracto, a substância, os fundamentos éticos ou ético-políticos) é que um "político" medíocre e desprovido de verdadeira idoneidade democrática como Bush pode ser eleito, subverter na prática por completo todo o sistema demoformal a que (também) nos Estados Unidos chamam "democrático"; fazer do país que governa um verdadeiro Estado objectivamene pária em termos do (criminoso, despudorado, continuado des) respeito pelas regras mais elementares do modelo democrático e dos acordos e convenções internacionais; obter determinados resultados precisos, específicos com esse seu bárbaro e imoral comportamento "político", sair, entregar a outrem a gestão dos destinos do país sem que os resultados políticos e geopolíticos obtidos através da barbárie sejam devidamente ressarcisos, pir um lado e evitados futuramente, por outro.

Esta é, de resto, diria eu, uma das "chaves" do funcionamento essencialmente anti-democrático (instrumentalmente demomórfico) do "regime".

Ou seja: o recurso cíclico, "estratégico", por parte do que chamo "demomorfia instrumental" ao reverso da própria Democracia não consttui, de facto (e, pior ainda: de direito!) um acidente no funcionamento 'normal' dessas mesmas demomorfias.

Pelo contrário! É essa a (i) lógica mesma, a prática normal, do modelo demomórfico como tal---modelo esse que, exactamente porque não opera como uma teoria genuína da realidade destinada a guiar e a estruturar previamente o nosso "uso" ou o nosso "consumo" político e civilizacional dela mas, de facto (e, volto a dizer: pior ainda de direito!), como mero revestimento exterior im/puramente funcional que se "atrela" ao carro da economia" com o único propósito de "decorá-lo politicamente", a única maneira que o "sistema inversional" formado por uma economia "com uma política instrumentalmente móvel a toda a volta", cumprimdo contínuas órbitas em seu redor tem de absorver os inevitáveis choques que a sua naureza des/estruturalmente disfuncional está condenada a gerar é essa de recorrer ciclica (e/Ou "estrategicamente"!) ao oposto de si a fim de (como dizer?) ir-se "tant bien que mal" equilibrando sobre a própria História, se assim me posso exprimir.

Não foi só o tandem ou "sistema", o citado ciclo, Bush/Clinton, por exemplo: foram, entre nós os ciclos duais Cavaco Silva/Guterres ou Durão Barroso e Santana Lopes/Sócrates como há-de previsivelmente ser o que vai, ao que tudo indica, ser formado por esse mesmo Sócrates e qualquer outro ou outra a que o "regime" se veja obrigado a recorrer a fim de gerir, então, mais... "democraticamente" os sucessivos abusos e gravosos desmandos sociais úteis cuja prossecução entregou a esse mesmo Sócrates, logo que a maioria absoluta por ele arrancada à sociedade portuguesa que o elegeu lhe permitiu "contornar democraticamente" as regras essenciais da própria Democracia, a começar pela que diz que, ao contrário do que sucede nas ditaduras formais, nas democracias a "razão da força" deve, em todos os casos, ceder o passo à força da própria razão, pelo que as maiorias não só não têm de como não devem ser absolutas para permanecerem, em todos os seus posicionamentos e decisões, efectivamente democráticas.

Se, entre nós como nos Estados Unidos, houvesse em vigência uma Democracia verdadeira, autonomamente política e não, como disse, apenas instrumentalmente demomórfica (o que significa: se houvesse em efectivo funcionamento, num caso como noutro, uma Autoridade Fomal de Controlo Democrático, com poderes tribunalícios efectivos, a fim de fiscalizar o estrito controlo dos programas políticos e para sancionar efectivamente os prevaricadores, nunca o bushismo, o cavaquismo ou o socratismo poderiam ficar a rir-se por terem ferido gravemente a democracia a coberto de falhas gritantes existentes nela--e mais: ninguém, sector económico, social, político poderia congratular-se por tal ter na realidade acontecido, antes de a democracia voltar a adquirir, obtidos certos resultados "úteis" da sua "subtil, educada elisão", os traços que mais vulgar e mais caracteristicamente a distinguem.

Georgy Lucács

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