Aristóteles
À questão do fundamento e da substância específica da dita representatividade.
O "Diário de Notícias" de 22.09.08 insere um texto intitulado "Rui Teixeira escapa a processo por erro grosseiro" a partir de uma breve análise e reflexão sobre cujo conteúdo é possível ter uma ideia razoavelmente nítida (pelo que lá diz como, sobretudo, por aquilo que não diz, i.e., por quanto está "activamente ausente" do que diz) da visão ou do entendimento vigentes em Portugal, hoje, relativamente à magna questão da representatividade política em Democracia.
À questão do fundamento e da substância específica da dita representatividade.
Sobre o modo como, enquanto cultura, não somos, de todo, capazes de distinguir entre negociação/contratação útil do exercício funcional do poder político e a cedência, pura e simples, do próprio poder político, disso falamos com mais detalhe e com outra amplitude noutro lado.
Aqui, trata-se, sobretudo, de discorrer sobre um aspecto particular desse equívoco verdadeiramente sistémico que faz do nosso regime político vigente muito mais um subtilísimo "despotismo (supostamente, pelo menos...) esclarecido" recauchutado e "demoformalmente decorado" do que propriamente uma genuína Democracia.
Ora, volto a dizer, aquilo que constitui o objecto mesmo da contratação social que é base distintiva do paradigma democrático é o exercício funcional do poder, não o próprio poder.
O que isto significa na prática é que a avaliação cuidada da acção dos agentes da representatividade faz parte integrante, intrínseca, indissociável do exercício da Cidadania autenticamente democrática de tal modo que pode (e deve!) dizer-se que só há democtracia ou só há, pelo menos, possibilidade efectiva e objectiva de haver democracia quando tal avaliação tiver achado suporte e expressão institucional tessitária no corpus dos dispositivos democráticos mais básicos e essenciais.
A vigilância democrática (de que a avaliação, igualmente democrática, é uma das componentes fundamentais) permite impedir, por exemplo e desde logo, o expedinte vulgar, escandalosamente ilegítimo e comum, de "insinuar" disfarçadamente, de forma cíclica, nas práticas comuns da própria democracia todo um conjunto variado de "instantes correctores" espúrios regulares, originários de concepções e/ou sistemas não-democráticos da política, com o objectivo de manter actuante aquilo que, continuando embora a ser chamado, por pura (ou impura!) "inércia crítica e analítica", "democracia" representa, afinal, já, na prática, apenas uma forma completamente apócrifa e contrafeita dela.
Estão neste caso, muito clara (e também muito perversamente!) as chamadas maiorias "absolutas", por exemplo que nada mais são em si mesmas do que uma espécie de extensão ulteriormente (dis!) funcional e ulteriormente perversa do "direito" já reconhecido na maioria das "democracias" ocidentais, a quem exerce nelas o poder...poder fazê-lo de uma forma que escapa, ainda mais indesejavelmente do que é comum, à possibilidade efectiva de fiscalização democrática em tempo real por parte da Cidadania assim como de avaliação adequada, porque proporcional e, por conseguinte, justa daquela forma específica de exercê-lo.
As maiorias absolutas, não hesito em dizê-lo, representam um perversíssimo "cavalo-de-Tróia" do autoritarismo puro e simples (inexplicavelmente aceite, de forma pacífica, por todas as democracias parlamentares que conheço como parte integrante do seu utensiliário jurídico-político e institucional essencial!) embebido no coração dessas mesmas democracias na medida em que configuram a espúria concessão implícita de um aval completamente ilegítimo ao assentamento de todo o conjunto da acção política a desenvolver numa comunidade na "razão" da força em detrimento daquilo que permite exactamente distinguir, na essência, uma democracia de um regime autoritário: a consagração da necessidade nuclear, essencial, imprescindível, de fazer vencimento exclusiva e obrigatoriamente pela bondade dos argumentos, formalmente reconhecida em sede parlamentar e colocada, assim, por exigência da própria Lei, no centro mesmo dos mecanismos decisórios de natureza política na qualidade de condição e pressuposto incontornável de decisionalidade.
Ora, aquilo que está, de facto, a requerer quem pede uma maioria absoluta é (in!) justamente que se dispense o poder político e o respectivo exercício em concreto de obecederem à referida necessidade nuclear de fazer vencimento pela força da bondade da argumentação que esse mesmo poder pode, que ele é capaz, que lhe é possível, trazer ao conhecimento da atenção e do discernimento da Cidadania a fim de que esta reconheça no momento democráticamente justo como pressuposto indispensável para que passe à prática (tempo esse que é antes de as decisões estarem tomadas e passarem à prática) o respectivo benefício para o bem colectivo.
Ou seja: não há de facto (de facto e também já agora, de direito!...) compatibilização, teórica ou prática, possível entre Democracia e maiorias absolutas.
Não há como vigiar e avaliar activamente, de forma democrática, uma "democracia" que assenta na figura democraticamente aberrante da maioria absoluta.
Porque desoptar um político ou um partido no fim de um mandato não significa realmente avaliá-los nem, como facilmente se compreende, envolve qualquer forma de vigilância activa sobre qualquer um deles.
Um exemplo limite (porque envolve a acção de uma superpotência, a independência de um país sobrerano e a morte regular de milhares e milhares de pessoas, entre muitas outras malfeitorias e iniquidades): no caso limite dos Estados Unidos e da guerra que conduzem actualmente no Iraque, por exemplo, ver (com civilizado alívio, embora!) chegado ao fim o tenebroso período do "bushismo" que a desencadeou decididamente não basta: não é ética nem politicamente legítimo que uma democracia se declare completamente ilibada de derivas autocráticas anteriores cometidas em seu nome pelo simples facto de desoptar ou desvotar, no fim ordinário de um ciclo político um agente político ou um governo indignos.
António Gramsci
Na realidade, as Democracias que não avaliam e não punem (i.e. as que não dispõem de dispositivos institucionais claros para punir e que são infelizmente a esmagadora maioria!) os políticos indignos avalizam, na prática, implícita mas real, objectivamente, as referidas derivas e ficarão para sempre suspeitas de com eles terem, de algum modo, beneficiado.
De, assim, mais ou menos episodicamente contaminada a própria genuinidade senão da letra (que é tantas vezes permissiva) seguramente do espírito democrático nelas supostamente vigente, alguém ter dessa contaminação, com o beneplácito implícito dela, impunemente beneficiado.
E isto não diz respeito respeito apenas aos casos limite como os da brutal guerra levada a cabo no Iraque pela presidência norte-americana ainda em vigência: é extensiva a qualquer acto ou conjunto de actos políticos deliberados durante as fases de "suspensão democrática efectiva" que são as m,aiorias absolutas. Incluindo, por exemplo, a extraordinária... "cruzada" conduzida actualmente pelo poder político em exercício entre nós, contra aquilo que ele próprio designa pelos "interesses".
O governo dito "socialista" chegou, com efeito, ao poder com o objectivo determinado de reduzir drasticamente e, como hoje é impossível não ver, a qualquer preço pré-determinados valores de despesa pública. Um tal projecto in/essencialmente técnico e de cariz friamente "economocrata" (que ninguém do governo alguma vez confessou, aliás, abertamente durante a campanha eleitoral assim como subtraíu à Cidadania em geral a informação leal das consequências inevitáveis do seu modo particular de conceber a "economia do Estado social"); um tal projecto, dizia, passava inevitavelmente pela desarticulação substancial senão mesmo substantiva do próprio Estado social---o que deixava obviamente perceber ir despertar a indignação e a revolta, quer de uma ampla gama de profissionais das áreas da Saúde, da Educação ou da Justiça, quer, por maioria de razão, das populações afectadas pela cegueira economaníaca "socialista". o poder político sabia que, se confessasse honestamente a todos os interesados, à Cidadania, aos por ele... "representados" as medidas que o seu próprio projecto pressupunha não teria qualquer hipótese de ser eleito exactamente porque esse "projecto" não podia com certeza ser encarado por aqueles quem gravemente afectava como bom ou sequer como minimamente "argumentável".
A "solução"? A "solução" foi pedir a maioria absoluta!
Georgy Lukacs
Com ela contornava o poder político (com a óbvia deslealdade que facilmente se reconhece, aliás!) a mais que previsível revolta, a compreensível indignação, os naturalíssimos protestos das populações lesadas!
As maiorias absolutas (que são um meio conveniente, habilidoso, subtil, de "dar a volta por cima" com o beneplácito da Lei à questão do des/controlo nuclear da acção política) não visam, de facto, eu sempre o disse, outra coisa senão a possibilidade de opção aberta ao poder por formas mais ou menos regulares de interrupção "estratégica" da democracia quando esse mesmo poder político é detentor de um projecto demasiado unilateral e "significado" de sociedade, no contexto da luta social, económica e política entre os cidadãos ou, melhor dizendo, entre os grupos ou classes de cidadãos.
Com uma maioria dessas visa-se, na realidade, no que não pode em justiça deixar de ser entendido como uma grotesca 'paródia' de Democracia, eleger não um governo com um programa para servir uma Cidadania ou uma sociedade mas na realidade, completamente ao contrário, eleger... uma sociedade a fim de servir um projecto político pré-existente.
O "Diário de Notícias" ao publicar a notícia acima começada por referir relativamente à avaliação (assim como à consequente responsabilização, é bom não esquercer!) dos juízes volta a trazer à colação (se calhar sem propriamente o desejar mas enfim!..) o problema essencial da responsabilidade em Democracia: os juízes (como os médicos ou os professores) devem ser avaliados no contexto da respectiva acção profissional?
Com certeza!
Mas se, no caso de todos esses profissionais é... "com certeza", como admitir que não tenha necessária, obrigatória, impreterivelmente se sê-lo (e ainda mais... "com certeza"!) no caso dos cidadãos a quem compete gerir socialmente, de forma global, nacional, a respectiva actividade??!!
Sem comentários:
Enviar um comentário