domingo, 16 de agosto de 2009

"Évora que-Deus-tem"


Vou começar por uma revelação: sou do tempo em que Évora era uma cidade alentejana!

Realmente alentejana, quero eu dizer.

Foi antes da invenção da expressão "qualidade de vida" que o mesmo é dizer quando, mau grado tudo... "o resto", alguma ainda era, entre nós, possível em lugares como justamente essa Évora "a gritar de uma álgida obsessiva, vasta e perfeita, ilimitada cor branca" que era o mais perto que, como país, conseguíamos chegar da solene, sábia, "mediterraneidade plena" de Corfu ou Creta...

Uma Creta sólida e, em larga medida, interior, cintilando de pura horizontalidade, sussurrando com característica solenidade a sua majestosa fome de infinito!

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Hoje, com Universidade e tudo, a gente vai lá e tem sorte se conseguir evitar ser "festivamente" passado a ferro numa daquelas evocativas e outrora remançosas ruinhas que eram parte essencial do seu encanto de "Veneza terrestre sabiamente calcinada", cheia de um mistério que apetecia ir encantadamente colhendo, folha a folha, das esquinas alvas, soberbamente irregulares que outrora feriam habilmente a cidade, de um extremo ao outro, de sombras e odores, esculpidos, uns e outros, a branco no labirinto inquieto e tenso das ruas e becos.

Uma geometria do fascínio que acabou com o automóvel e a afluência pífia de um cosmopolitismo importado, mil vezes mais provinciano do aquele a que supostamente a vaga de exógeno e apressado "progresso" veio dar fim.

Ver (ver o que se chama ver, isto é, inalando quase extaticamente o que Michel Butor chamou, numa expressão hoje clássica, o seu "genie du lieu"---se o "lieu" conseguiu, mau grado tanto "progresso", conservar algum "génie" a que possa legitimamente chamar seu---é algo que não passaria hoje pela voante cabeça deverdadeiros e falsos "eborenses"...

A cidade de Garcia de Resende, Antunes da Silva e até "um pouco de" Vergílio Ferreira transformada em Subúrbia excêntrica tragicamente e vulgar onde as peliças vêm, se calhar, de Florença (via Bennetton) e onde hoje ("progrès oblige"!) caem aviões e o único mistério consiste em saber se... o MacDonald's (o "MuckDonald's", lhe chamo eu...) está aberto hoje e tem lugar para estacionar o carro...

..."And yet some fools insist on calling it «quality of life»"!

"How [unbelievably!] stupid can you get"?...


[Imagem, 'Évora sob a neve', extraída com a devida vénia de esf.esec-severim-faria.rcts.pt]

2 comentários:

Ezul disse...

A cidade que conheci na minha infância era uma cidade a que ia muito raramente, só para visitar uma pessoa amiga. Íamos mais facilmente a Setúbal, à Parede, a Cascais.Por isso, para mim, a referêncis a Évora era a de uma terra que ficava a seguir a uma longa estrada, ao longo da qual pastavam vacas. Só me familiarizei com Évora a partir do momento em que foi necessário ir ao hospital, em que surgiram os exames, os mini-concursos... Não digo que não encontrei alguns momentos de encanto na cidade, ou que não olhei com espanto e com gosto, algumas vezes, para os recantos e para os monumentos... Mas, como já tive ocasião de desabafar com algumas pessoas, só recentemente consigo evitar sentir uma carga emocional pesada, demasiado pesada, em relação a Évora. E tal sentimento não se deve apenas a razões familiares, é como se a História guardasse nas pedras das calçadas a memória de um sofrimento difícil de superar.

Carlos Machado Acabado disse...

É o "génie du lieu" da cidade, para si...
Eu conheci-a ainda relativamente "jovem", cidade de latifundiários e de inomináveis abjecções mas que, tal como eu a via, tinha sempre uma dignidade verdadeiramente única guardando pudicamente para si os sentimentos mais íntimos e as emoções mais delicadas...
Para mim, Évora era uma cidade-sombra que, sobretudo à noite, desaparecia, levada no ar pelo silêncio e pelo vento quente da planície.
Recordo-me de atravessar o Geraldo com o meu pai e os raros cafés serem feridas de luz num mistério vagamente geométrico que nunca (felizmente!) logrei decifrar completamente.
Hoje, claramente o mistério perdeu-se e Évora é apenas uma cidade onde se vai ao médico ou, mais prosaicamente ainda, às compras.
Sem transcendência nem mistério.
Já não há nada para nos intrigar e estimular a imaginação.
Os carros, as lojas da Benetton e uma clase média igual em toda a parte substituiram definitivamente o que era um enigma de cal e silêncios, ardendo vagarosamente na planície.

"Is nothing sacred any more?..."