domingo, 30 de agosto de 2009

"Nu, nudismo e pornografia" [T.I.P. Text in Progress]


Algo que nunca deixou de me causar um profunda inquietação e desconforto é o modo como, enquanto cultura ou 'universo cultu(r)al' mais ou menos próprio e específico, lidamos com o corpo humano.

Já aqui teci algumas considerações pessoais sobre o que entendo ser enquadramento histórico e cultu(r)al do tema.

Tendo decidido, desta vez, deter-me (muito breve e muito sumariamente, embora) sobre um aspecto particular dessa sempre dificil problemática envolvendo a nossa relação mais ou menos estável e tópica, cultu(r)al, com o corpo, decidi começar por partir numa brevíssima viagem---numa rapidíssima "journey without maps", como diria o Greene do início de carreira---pelo (não?) espaço 'virtual' em busca de diversos modos mais ou menos... 'avulsos' de representá-la e documentá-la.

E constatei que, do nudismo à pornografia confessa, permanecemos sempre, de um modo ou de outro, separados do acesso franco e, sobretudo, livre (liberto de pré-juízos e pré-conceitos ou, na melhor das hipóteses: pré-conceituações mediadoras daquela relação) às múltiplas visões do nosso próprio corpo (desde logo, da nudez, do corpo nu, do corpo real) por uma espécie de "tabuleta moral" persistente que, no caso da "Rede" se converte em letreiro efectivamente material, avisando de que o que o blogue ou site que se está "prestes a ver poderá incluir conteúdos próprios apenas para adultos" ou coisa que o valha.

O corpo humano algo... "próprio apenas para adultos"?!

Ora, aqui, nesta espécie de fronteira absurdamente "moral(ista?)" onde deveria iniciar-se a confrontação, volto a dizer: franca e aberta---idealmente "fenoménica" ou fenomenologizada: é assim que começam todas as ciências genuínas---com o corpo humano (connosco próprios, na realidade: com toda uma "pré-ciência" ou objectiva e aberta ciencialidade do corpo) começa, sim, diria eu, uma espécie de mais ou menos discretamente impositiva e persistente mas muito subtil, quase transparente (in) acção de "generosa, estratégica desinformação" que todos, na realidade, sabemos (ou deveríamos saber) como e, sobretudo, onde vai acabar: na potenciação sempre diáfana mas firmíssima da nossa também ela ("et pour cause"...) persistente suspeita relativamente a nós mesmos, algo a que a chamada "revolução sexual" dos anos '60 (que foi sempre, aliás, entre nós, alguma coisa de profundamente tépido, hesitante e nunca mais do que realmente tentativo ou exploratório) (1) não conseguiu opor-se com um mínimo de sucesso.

Ou seja: logo de início e sob a capa de uma benevolente e prévia (porém, inescondivelmente conceituadora e significadora) preocupação relativamente à nossa saúde "moral", somos levados a intuir (por 'induzida, consistente pressuposição') que o corpo (repito: o nosso próprio corpo: nós mesmos "whatever that means"...) é---somos---afinal [continua(mos), afinal, a ser!] algo que estamos legitimados para usar (que precisamos de legitimação para usar) mas sempre (i) com extremas reservas (i.e. com áreas específicas, pré-determinadas de reserva e suspensão) que operam, na prática, já como um subtil (ou não-afinal-tão-subtil quanto isso...) anátema sobre esse domínio da personalicidade que, vista por aí, não somos realmente nem na realidade temos mas estamos, sim, em certas circunstâncias precisas, autorizados a usar---o que é substancialmente diferente)---e sempre também (ii) sob tutela.

Logo de início, é-nos, pois, dito que o nosso corpo não nos pertence, de facto (ou, pior ainda: de direito) mas à cultura ou à sociedade (a uma tradição conceptiva que começou por ser especificadamente religiosa) que nos rodeia e segue velando, atenta---e sempre generosamente, claro!---por nós.

Uma espécie de 'cone de penumbra cosmovisional' e, depois, naturalmente 'comportamental' envolve o corpo (falo especificamente do corpo como sede específica de uma ou várias sexualidades) envolve sempre áreas determinadas desse mesmo corpo (envolve, diria eu---e sublinhá-lo-ia de modo particular: a propriedade material efectiva dele e dos seus atributos).

O que é grave em tudo isto é, desde logo, que, na prática, se torna difícil (se torna, no limite, impossível) distinguir a verdadeira pornografia i.e. as modalidades particulares de representação do corpo que passam por formas especificadamente sexualizadas de poder e especificamente de opressão (concretamente de domínio ou 'colonização' de um sexo e de uma sexualidade pelo outro ou por outros) do que é o direito à propriedade livre desse mesmo corpo---e que configura um direito cognicional (e cultu(r)al e político!) verdadeiramente básico e essencial, diria eu: de cidadania.

A verdadeira pornografia não incide, a meu ver, com efeito necessariamntye sobre o sexo e a sexualidade, como mais de uma vez tenho defendido: há pornografia (sentimental, emocional) nas "telenovelas", por exemplo e "toda a gente" as vê e aceita implicitmente como forma perfeitamente legítima de "estretenimento familiar".

Há pornografia nelas porque, para além da pobreza especificamente estética que em geral as identifica nelas se verificam formas demonstráveis, endógenas (constantes da estrutura narrativa, do argumento da esmagadora maioria) e exógenas (exercidas pelo genre sobre quem o consome e, sobretudo, sobre quem o consome em exclusivo---e são muitas as pessoas que entre nós o fazem, como é sabido) de dominação exactamente como existem na pornografia "convencional" ou "formal", digamos assim.

O facto de identificarmos automáticamente "pornografia" com "sexo" e, de um modo mais subtil não-raro "sexo" com pornografia" diz muito relativamente à nossa relação cultu(r)al tácita com aquele.

E, de algum modo perfeitamente demonstrável, tudo começa em coisas aparentemente generosas como os "avisos" que referi.

Que eu acho, por conseguinte, que deviam pura e simplesmente ser eliminados e os conteúdos por eles "protegidos" abertos incondicionalmente à exploração por qualquer pessoa ou melhor dizendo: pelas pessoas de qualquer idade?
Não!

Que eu acho que deviam ser (como dizer?) institucionalmente sempre genericamente antecedidos de uma verdadeira Educação Sexual ministrada curricular e naturalmentre nas escolas.

Aquilo que o actual poder político (não!) tem feito nestas matérias é algo de literalmente obscurantista e medieval.

Não tem, com efeito, o mínimo sentido numa sociedade realmente moderna e, sobretudo, que se reclama "do conhecimento"; numa sociedade onde as formas de exercício do poder político têm necessariamente de ter incorporadas naturalmente as determinações e formulações mais avançadas da Ciência, questionar a xcomunidade sobre se ela deseja que a "sua" escola, a escola pública deve ensinar o conhecimento ou, exactamente ao invés e por absurdo, leccionar o seu contrário.

Ignorar o cohecimento (e absurdamente "referendá-lo") não é um comportamento nem responsável nem sequer remotamente moderno.

E, no entanto, é (in!) exactamente isso que o poder político faz quando acha que deve submeter o ensino de determinados conteúdos que são de natureza objectiva e genuinamente científica e não política a referendo, considerando-os, de forma, como disse, medieval e obscurantista, uma questão "de consciência" quando são, na realidade, de índole, volto a dizer, genuína e especificamente científica, e envolvem a questão (epistemológica e politicamente capital) do que chamo "a propriedade social dos meios de acesso e transformação da realidade" que é precisamento o domínio particular e específico, primário, da Ciência.

Pessoalmente, entendo que não há diferença---diferença substantiva!---entre considerar o ensino do conhecimento de algumas funções e atributos naturais do corpo àqueles a quem ele deve legitimamente pertencer (todos nós, seres humanos) como uma questão "de "consciência" ou considerar que o é o ensino das teorias de Darwin e dos pós-darwinianos em geral, como sucede, ainda hoje, em alguns pontos do Sul "criacionista" dos E.U.A. ou (porque não?) considerar que há verdadeira alternativa possível (desde logo, académica, escolar) entre medicina e feitiçaria.

Não-ensinar uma matéria que existe (e o corpo humano existe e nnguém de bom senso e em seu juízo perfeito duvidará que as leis biológicas, fisiológicas, etc. precisas por qui ele se rege existem também) configura a ensinar o seui contrário que é a nescidade ou, numa palavra que toda a gente ndende, a ignorância.

É converter a ignorância na décima ou décima primeira disciplina do (aberrante) currículo assim (des) concebido para gerir.

Ora, eu acho que poder político algum tem---deve ter---precisamente o poder material de tutelar desse modo e a esse ponto, o direito das pessoas a serem informadae sobre formas de funcionamento específico da realidade que lhes diz, directa e na verdade, inalienavelmente respeito.

É preciso perceber que, quando hoje (ainda!) se põe esta (falsíssima!) questão do estatuto a atribuir a partes relevantes do conhecimento (aquele "problema" de saber se a ciência ou ciências da sexualidade são matéria de necessidade ou de alvítrio e/ou "consciência) é, na realidade o problema de uma (absurdíssima!) "opção" entre conhecimento e ignorância, por um lado mas, de igual modo, entre poder e abuso do poder por parte dos governo ou governos, que estamos, na realidade, a permitir que seja posta.

É preciso---é essencial!---desmistificar, das mais diversas formas responsáveis possíveis, o corpo e a "questão do corpo".

Falo da "questão do corpo" como outros falam por exemplo, da "questão homossexual" ou da "questão judaica".

Nenhuma dessas questões existe, de facto, senão na cabeça daqueles que ainda não deixaram, realmente, a 'Idade Média intelectual e/ou intelectiva e inteleccional': o conhecimento objectivo do corpo---uma ciência ou mesmo uma genuína "ecologia da corporalicidade"---não é ou não são todos esses itens uma questão "política" ou "moral".

É---são---uma questão de necessidade científica: uma sociedade que (sem qualquer justificação ou fundamento demonstrável, aliás) se reclama "da informação" deveria, em qualquer caso, ser a primeira a percebê-lo!


NOTA


(1) Recordo-me, desde logo, de duas coisas que me marcaram: a exibição do filme "Helga" que passou entre nós com uma classificação "especial" ("para maiores de 21 anos"!) que deixou algumas mães de dezanove e vinte fora da possibilidade de vê-lo (!) e um célebre e, para mim, decisivo livro de Kenneth Walker, editado entre nós pela Europa-América, do saudoso Lyon de Castro, intitulado "Sex and Society" e que apenas pude ler, já na Universidade (!!) levando comigo o cartão de identidade que provava que "tinha mais de dezoito anos", idade mínima obrigatória para lê-lo...




[Na imagem: "Venus", colagem sobre papel do titular do blogue, originalmente publicada em http://umnaoalexandreonirico.blogspot.com]

1 comentário:

Gonçalo disse...

Concordo com tudo o que escreveu também eu penso de modo semelhante.
Eu nunca percebi porque é que há determinados filmes que não podem ser vistos senão em canais codificados ou só a partir de uma certa hora e filmes de violência, de tortura, todo o tipo de horror passam a qualquer hora do dia, qualquer criança tem acesso a eles...E nesse lote incluo essa "pornografia" tão ou mais perigosa que a outra que são as telenovelas a passar a qualquer hora onde o sexo está omniprosente mas de uma forma dissimulada (assim as criancinhas já não ficam afectadas não é?).É uma hipocrisia total,aí já a família toda pode ver que não há problema.Um filme porno é como outro filme qualquer e até há uns melhores que outros como em qualquer arte.