terça-feira, 18 de agosto de 2009

"À Mes Héros Spirituels"


Vi hoje no "Notícias" (bleaghhh!...) uma curiosíssima, envolvendo o 'velho' Bob Dylan que, diz o jornal, foi preso algures em "Smallville, U.S. of A." por andar a rondar uma casa qualquer---uma daquelas coisas impressionantemente efémeras e descartáveis a que um americano típico chama "casa".

Confesso que não resisti à tristeza!
O homem que escreveu (e sublinho: escreveu) coisas fantasticamente duradouras---porque o Dylan como o Zeca entre nós foi um Poeta notabilíssimo que ficou para sempre refém de uma imagem injustissimamente redutora---como "The Times, They Are A-Changing" (ou a minha favorita "Farewell, Angelina", que a Baez transformou numa coisa absolutamente sublime, um autêntico cântico literalmente irrepetível e definitivo ao "desconcerto do mundo", na expressão clássica de Camões---Não! Estou a ser injusto! O "Farewell..." não é, na realidade, irrepetível: há um poema do Sena, cantado pelo Zeca intulado "Epígrafe para a Arte de Furtar" que se lhe equivale em parte pela temática mas seguramente pela exemplar concisão e, em última instância, pela beleza vefrdadeiramente 'total'!); mas, dizia eu, entristeceu-me---deixou-me por instantes imensamente deprimido---"ver" o homem que escreveu esses e outros hinos absolutos da nossa comum 'adolescência mental e cultu(r)al', descrito como um "velhote esquisito, vestido como umas calças de fato de treino e um gorro, com um ar muito suspeito" ou coisa que o valha.

Sobretudo porque, ao que parece o 'velho' Zimmermann apenas procuava captar a "alma", o "espírito"---o "génie", como escreveu o Butor---de um lugar onde, julgo, Bruce Springsteen tinha escrito "Born To Run".

Ora, este procurar captar o "espírito" ou o "génie" dos lugares é algo quie me diz, a mim, pessoalmente, muito.

Há dois sítios cujos "espíritos" ou almas" particulares me levaram anos a procurar---e a supor, um dia ter achado: Paris e Veneza.

Paris, "descobri-o" há muito, em adolescente, nos livros do Carco (recordo-me, sobretudo, de uma edição que achei, um dia, quase por acaso, na velha "Barateira"; uma edição de "L´Homme Traqué" na tradução portuguesa, editada pelos "Estúdios Cor" que, suponho, perdi por ocasião da ida para a Bélgica mas que eu devorava regularmente com uma avidez virtualmente insaciável, detendo-me hipnotizado na capa carmim e amarela, inimaginavelmente sugestiva da sombra, do mistério---de um insondável, persistente lado negro da "gaulicidade" que viria mais tarde a confirmar nessas imperdoáveis circunstâncias históricas e humanas de abjecção que tão tragicamente Pithiviers e Beaune-la-Rolande simbolizam.

Antes haviam sido as aulas de francês, primeiro no "Gil" e mais tarde na "Luís de Camões", as canções que era preciso decorar e cantar nas aulas ("Colimaçon Est Un Boudeur", "Il Était Un Petit Navire" "Sur Le Pont d 'Avignon" e por aí adiante), os livros do Verne, autorizados e os do Zola, severamente mantidos nun "Index" familiar e liceal que me deu um trabalhão a iludir...; mais tarde o Sartre (que me forneceu uma providencial "boleia" no sentido de uma certa, formal legitimação escolar e familiar do projecto natural de rebeldia---e de caótica, torrencial, característica iconoclasia!---adolescentes que, no autor de "Les Mains Sales"---o primeiro livro que li, sem perceber, como era, aliás, inevitável, patavina dele...---achou o veiculo ideal, literalmente inargumentável, para legitimar-se 'socialmente' numa sociedade dominada por um catolicismo pervasivo e sufocante, ainda obviamente sem a necessária consistência mas com um fervor que chegou, a dado passo, a rondar literalmente a idolatria); e tantos outros: Raymond Radiguet ("Le Diable Au Corps"), Jean La Varande, Eugene Dabît ("Le Pays Où L' On Arrive Jammais"---que título fabuloso!), a descoberta de Breton e Prévert, da poesia cantada de Brassens, do cinema ideal de Tati, do Renoir, do Clair; enfim, toda uma França "imaterialmente concreta e, assim, absolutamente perfeita" que me ia chegando, dia a dia, "como por carta" e que fez com que, quando pela primeira vez me achei por fim---só eu sei em que circunstâncias mas pronto!...---frente a frente fisicamente com a Torre Eiffel, tivesse uma quase anti-climáctica impressão de melancólico "déjà vu"...

Depois foi a procura incessante desse espírito (que eu "desconhecia perfeitamente de ouvido"...) nas ruelas à época ainda remanescentes de um Montparnasse "quase desconcertantemente português" que eu tinha lido em 'tudo quanto era "Thérèse Raquin" e arredores' ; as idas---as peregrinações!---aos lugares míticos de uma memória indirecta mas minuciosamente absorvida sem sair praticamente dos... Anjos: à "Porte des Lilas", ao sinistro paredão da Santé, às últimas quintas e impasses que eu "des/conhecia" completamente do Leblanc, do Leroux e até de algum Simenon menor .

A França terá sido o país que mais generosamente me cdedeu a chave do seu próprio espírito---talvez como recompensa pelo escrúpulo amoroso com que o persegui por ruelas sem fim, dos cemitérios às catacumbas, dos museus aos "bistrots de quartier" onde ainda é possível captar um eco remoto daquele célebre "oeuf dur claquant commme un cri de métal sur le balcon de zinc" da "lenda"; numa palavra, dos lugares mais 'oficiais' e obrigatórios àqueles, íntimos, irrepetíveis e secretos que ela, França, reserva para os "pesquisadores de almas e de espíritos" como a Varda (ou a "minha" Duras...) e eu próprio...

Outro desses lugares que cedem prodigamente o espírito a troco de uma abordagem de persistentes amor e puro desvelo foi Veneza---onde me reencontrei um dia (eu que tinha entrado na cidade por Mestre e tivera uma decepção inimaginável, começando essa "cidade inexprimível e absoluta onde até a sombra é luz" que é Veneza por uma 'Amadora qualquer' que não merece de todo estar ali...) com um certo Mann angustiadamente íntimo e dilaceradamente contraditório; com um certo Lean que sendo um homem de outro planeta existencial e pessoal a entendeu como poucos; com um certo Visconti aristocraticamente desesperado e sempre arrebatadoramente crespuscular; um certo Goldoni subtil (mas em caso algum, arbitrariamente!) setecentista e cortesão, "Marivaux do Adriático" sempre fulgurante e prodigiosamente sarcástico; ou mesmo um certo Cimarosa barroco e, comparativamente vulgar mas irresistivelmente veneziano, ele que o não era, de resto, por nascimento.


Pois eu que percorri cidades errando horas infindas por becos e vielas, captando uma palavra aqui, um som acolá; uma cor naquela parede, um eco naquela outra; eu que assim, errando até as pernas se recusarem a continuar, fui "descobrindo" coisas únicas e muito 'pessoais' desde Gaudì a uma fabulosa "Certosa" de Pavia; desde as campas do "Père Lachaise" (onde fiquei, de resto, uma tarde várias horas fechado por acidente...) ao universo, para mim, sem paralelo de Sanfrediano (ou da casa "de" Dostoievski, ou da de Galileu) em Florença; eu para quem a uma certa errância que é tanto física como interior e que relógio ou calendário algum comanda e influencia, percebo como ninguém a "peregrinação" (imaginária? falhada?) do 'velho' Dylan e em sentida sintonia com ele daqui lhe mando toda a minha simpatia e o meu afecto (para já não falar na minha compreensão) revovadas.

Mas, atenção!
Tudo isso, simpatia, compreensão e afecto são para o "Bob", o "Bob Dylan", o tipo que compôs "Mr. Tambourine Man" e que pôs a Baez a cantar coisas que quero levar comigo, numa caixinha, para o túmulo, juntamente com um DVD do Tati, ham?

Quero eu dizer com isto que nada do que disse é para o Sr. Zimmermann---que eu com esse não quero nada (mas mesmo nada!) está bem?...

"Vocês sabem bem de que é que eu estou a falar!..."

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