terça-feira, 18 de agosto de 2009

"O corpo, esse animal perturbador e descentral!..."

Um traço sem dúvida marcante da "nossa" Cultura ocidental (e, designadamente, da portuguesa) prende-se, a meu ver, directa e inextricavelmente com uma "cultura" persistentemente interiorizada de repúdio e rejeição do corpo nas suas diversas formas (no seu melhor, uma e outra já substantivamente sublimadas, já conduzidas à condição, em larga medida, abstracta---ou abstractizada---de "simbólicas").

Algumas directas e evidentes; outras incomparavelmente mais subtilizadas mas nem por isso menos marcantes---e perversas.

Pessoalmente, associo (em tese, pelo menos) primariamente alguma de uma, a meu ver, característica, tópica resistência nacional (individual e, depois, naturalmente, também colectiva) à acção, isto é, à intervenção directa e efectivamente comprometida na "produção de realidade", à interiorização de "aspectos significados" da tradição judaico-cristã [envolvendo uma espécie de sempre impendente dualismo radical que nunca passa a dialéctico, nunca se... "dialectiza" de modo a poder interagir, de forma efectiva, com o real, antes tendendo sempre (in?) consistentemente para o maniqueísmo, mais ou menos puro e simples]; cultura essa que acabou por integrar-se reconhecivelmente no próprio fundo da (in) consciência colectiva nacional, aí passando a constituir uma componente cada vez mais estável e, até, no limite, como disse, cada vez mais tópica de uma certa portugalidade obstinadamente contemplativa e caracteristicamente passiva.

Tenho mesmo para mim que foi essa espécie de fundo de persistente passividade adquirida, fortemente entranhado, pois, já numa certa identidade colectiva igualmente estabilizada e persistente, que acabou por fornecer o "alibi" ou, dito de outro modo: o "fundamento teorético" ideal para lidarmos, como "nação mental" com a 'consciência aguda do declínio" que começou a instalar-se no subconsciente colectivo nacional após um certo---esporádico ainda que fulgurante--- "essor" nas décadas de 'Quatrocentos' e de 'Quinhentos' e guardada entretanto na nossa memória cultu(r)al colectiva.

É também ele que secundária ou terciariamente re-valorizado ("positivado") já como Cultura (na forma de um continuum cultu(r)al estável e fixo agindo centralmente de forma determinante em relação às diversas circunstâncias por que ia passando a própria "circunstância", objectiva mas talmbém subjectiva nacional) que está na base do que chamo a "tanatopia" ou "pensar tanatópico nacional" (uma variante do 'sebastianismo' e, no fundo, de cada um dos vários providencialismos históricos nacionais operando, na realidade como "concretações" ou "objectualizações" pontuais desse específico cosmovisional adquirido estável, 'mutado' já, tal como o vejo, numa espécie de segunda natureza cultu(r)al nacional).

Morrer (e renunciar a agir é uma forma genericamente intelectualizada, "simbólica" de "morrer historicamente" morrendo desde logo para a História) é, por definição, o "estádio supremo", como diria Lenine, da "perfeição tanatópica absoluta"---um pressuposto, pois, de "idealidade pura" onde o corpo não cabe mas que é o território teorético perfeito da---e para a---(in/acção da) alma.

Por mim, sempre que me fui dando conta de que cedia circunstancialmente a essa pressão instintual de "morrer" que nos percorre o inconsciente determinante como "povo físico mas, sobretudo, mental", organizava de imediato formas que eu pretendia fossem proporcionais e proporcionadas de "resistência" (as quais, não-raro, passavam pela adopção consciente de formas de uma certa "iconoclasia argumentativa" conscientemente assumida que não excluiam, aliás, a provocação).

A "educada profanação", como gosto de dizer.

Ora, uma das formas que este "projecto dialéctico pessoal de resistência à portugalidade inerte" que nos contamina a determinação para mudar a História e a torna um personagem indesejável na tranquila serenidade---"Seligkeit" ou "estática bemaventurança"---do nosso imaginário u/tópico colectivo) assumiu foi a adesão franca a um certo naturismo premeditadamente "caseiro" e deliberadamente "artesanal" (que se situou sempre nos antípodas do "naturismo caviar" muito em voga a dado passo em locais como Nice, Cap d' Agde ou a Costa Brava catalã) e que passava (que passou nesse início da "heróica" década de '70) por acampamentos deleitosamente "selvagens"no Meco, primeiro nos pinhais sobranceiros à praia e, depois, já em fuga, no areal propriamente dito, de mistura com velhos naturistas ortodoxos da "escola collucciana-vegetariana" e todo uma alegre e ruidosa "lumpen juventude" acabadinha de chegar da excêntrica Alemanha ou da sob inúmeros aspectos ainda "exótica" Grã-Bretanha...

Foram anos de intensa "militância" responsavelmente idealista, chamemos-lhe assim (tão responsavelmente idealista quanto possível, em todo o caso) a breve trecho completamente engolidos por uma enxurrada de torrencial, virtualmente inelutável truculenta "suburbanicidade" generalizada a que se tornou, por fim, virtualmente impossível fazer frente.

Em memória e como tributo a esses anos de "disciplinado mas sempre fervorosamente idealista anarquismo" vivido sob uma indiferenciada (estusiástica, vibrante!) inspiração vinda de todos os ldos: das canções-novidade de Ferré, das do Zeca, da filosofia de Reich (o que dela íamos conhecendo); de uma certa cultura "Hair" e "Oh! Calcutta", de repente, muito em voga à época, ou até, mais a sério, de uma outra cultura incomparavelmente mais séria respeitável vinda dos "Autos Sacramentales" do Calderón, levados à cena no São Luís (e, no meu caso, vistos com o Rogério de Carvalho, meu colega em Almada) ou até do teatro de Artaud, da seminal "revolucionalidade" marcusiana à mistura com "coisas" vindas directamente da anti-psiquiatria do Laing; pois bem, em memória e como homenagem a tudo isso que a pós-modernidade enterrou e converteu em "arquelogia da inconsciência colectiva nacional presente", deixo aqui uma espécie de imagem-bandeira que (nostalgicamente, admito...) pontualmente o evoca.

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