quinta-feira, 20 de agosto de 2009

"«La Régle du Jeu»: uma abordagem crítica pessoal"


Já aqui o disse mais de uma vez: tenho diversos filmes "de cabeceira" que vão do fabuloso "Un Chien Andalou" da dupla Buñuel/Dali (visto há... séculos no velho Palácio Foz, à época sede do S.N.I. salazarista) até "Rio Bravo" de Hawks, passando pela "Aurora" de Murnau, e "M..." de Lang sem esquecer o luminoso e irrepetível "Mon Oncle" de Tati.

... ou o não menos arrebatador "La Régle du Jeu" que estive hoje a rever enquanto o regravava de video para DVD.

A minha versão é a de uma série televisa intitulada precisamente "O Filme da Minha Vida", apresentado pela Inês de Medeiros, na RTP " (quando ainda "havia" RTP 2, claro!...).

No estágio, o Gastão Cruz recomendou-me que o não deixasse de ver (passou, salvo erro, no "Monumental", numa sessão especial).

Pois, fui vê-lo e fiquei absolutamente deslumbrado!

Sempre tive, de resto, com a Obra e a Pessoa do Renoir (e com a cultura francesa, em geral, aliás) uma identificação muito forte que me vem do modelo de educação que vigorava à época da minha frequência do liceu, muito assente, toda ela, em modelos e conteúdos originários precvisamente da experiência e, genericamente, da realidade cultu(r)al francesa.

Revendo o filme e o diálogo introdutório, constato hoje que quer Inês de Medeiros quer Mário Mesquita que escolheu o filme como sendo o "da sua vida" parecem, curiosamente, ter passado um pouco ao lado do que entendo ser a "mensagem" essencial desta soberba "fantasia dramática".

Partindo do filme, com efeito, adejam ambos constantemente em torno de "regras" que (em meu entender, pelo menos) têm pouco que ver com aquilo que, no filme, seentende (ou se sub-entende) por tal.

E que é muito simplesmente o seguinte: toda a "regra do jogo" social (e toda a "regularidade" desse jogo) assentam na aceitação implícita, tácita e também inerte, dos esquemas consolidados de poder.

Ora, o que faz a "normalidade" do modelo específico de poder dentro de uma sociedade não são, "diz" Renoir, verdadeiros fundamentos mas, como digo, tão-somente a conformidade (e o conformismo!) implicitamente (isto é, não expressa, não criticamente) acordados por todos e entre todos (entre desigandamente todas as classes) que compõem o todo social.

A prova de que não há verdadeiros fundamentos para a ordem---para uma certa ordem, seguramente---é que, de repente, todo o sistema que parecia inquestionável, que parecia fluir perfeita e normalmente, entra em crise devido a um incidente absolutamente banal e na aparência de todo inocente.

A "regra do jogo" é, pois, que as regras que norteiam os jogos de poder social e político possuem uma fragilidade intrínseca imensa (eu diria mesmo: des/estrutural) que as faz apenas parecer tão consistentes e sólidas quanto (ilusoriamente, porém) definitivas.

A sequência em que o guarda-caça Schumacher entra pelo castelo de arma em punho (virando 'simbolicamente' contra a classe dominante, contra concretamente o patrão, na casa deste) a arma que era e é deste configura, a meu ver, uma espécie de "logotipia conceptual metafórica" que resume toda o conteúdo cosmovisional (e ideológico---não tenhamos receio das palavras!) do filme.

O "resto" é Renoir em todo o seu meridionalíssimo esplendor visual e narrativo: as 'pinceladas cinematográficas' caracteristicamente "nervosas" (vindas, talvez, da 'herança genética' dos Renoir anteriores, desde logo, do pintor...); o amor (a intimidade, a sentida proximidade afectiva) pelos modelos (pessoais e narrativos); a ternura com que se detém na consideração instintivamente interessada, empática, das fragilidades humanas, no anti-heroísmo quase 'programático', quase 'agressivo' e provocatório, dos "simples"; o gosto (a sensibilidade) assumidamente (mas não "a qualquer preço") 'bourgeois(e)' (vou dizer deste modo, de forma intencional, premeditada!): o gosto instintivo pelo "lado comestível" ou, pelo menos... imediatamente "tocável", "experienciável" e até consumível da vida; a extrema humanidade, a vitalidade pura, muito latina, que se desprende do desenho de alguns comportamentos que parecem, a cada passo, "explodir" no écrã: tudo isso «é» Renoir e tudo faz com que aquilo que, a meu ver, é uma espécie de fascinante momento de lúcida, esclarecidíssima, análise política filmada a partir de uma «estória» de caça que "corre mal" ("qui tourne mal", como diria o próprio Renoior) se torne, por artes "mágicas" de um cineasta assombroso, em algo que nos toca muito para além da reflexão teórica e da "prise de parti" política!

Que se torna num dos mais extraordinários e seminalmente únicos filmes jamais realizados.

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