quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"Pride, Prejudice & the Mechanics of Progress"


Sem querer parecer [e ainda menos, ser!] retórico, diria que é cada vez mais firme convicção pessoal minha que grande parte do que entendemos serem as grandes "conquistas" civilizacionais se deve muito mais a vitórias arduamente obtidas pelos indivíduos e pelas sociedades por eles constituidas sobre os seus próprios pré-juízos e 'fantasmas' interiores [mentais, conceptuais, etc.] de toda a espécie do que propriamente aos que, indivíduos e sociedades humanas, julgamos ter conseguido vencer, com muita frequência pela força, nos outros.

Dou três exemplos que, um pouco ao acaso, me chegaram recentemente.

O primeiro tem a ver com feminismo e vem de uma obra de Joel Serrão ["Da Situação da Mulher Portuguesa no Século XIX", ed. Livros Horizonte, col. Horizonte, nº 48, Lisboa, 1987].

Na obra em causa, se debruça, como o próprio título expressa, Joel Serrão sobre a obra da pedagoga e estudiosa Maria Amália Vaz sde Carvalho, e diz textualmente:


[...] segundo pensava, a mulher "nunca será um funcionário pontual, nem um magistrado íntegro e inexorável, nem um operador de execução firme e rápida, nem um médico, nem um legislador.

Os que pretendem", insiste, "persuadir-lhe que exijka eses privilégios masculinos detestam-na, e querem perdê-la irremediavelmente". "E porquê essa condenação eterna ao limbo da secundaridade? Bem...É melhor voltar a conceder a palavra à escritora:

"A vida psíquica [da mulher] é periodicamente e crudelissimamente perturbada pelas crises da sua vida fisiológica. Eis o mistério sagrado e doloroso, que, revelado, dá a chave de todas as suas contradições e de todos os seus errros".


É preciso dizer que esta visão inescondivelmente positivista e materialista da realidade que hoje não pode, repito, deixar de causar estranheza e mesmo, no imediasto, algum reconhecível [e entendível] desconforto intelectual e crítico, possui, mau grado isso, uma relevância dialéctica específica que seria leviano ignorar---isto na medida em que, exactamente porque a História [e dentro dela a cultura são como os "caminhos" de Machado, isto é, antes de mais "estelas en la mar" sendo que não existem verdadeiramente caminhos, fazendo-se na realidade caminho "a andar"] ela, visão positivista, representou, na realidade, em si mesma, um avanço considerável sobre as formas de pensamento providencialista e transcendentalista e, por isso, disfuncionalmente "finalicista", que, de um modo global, influenciaram as formas tópicas de representação da realidade que antecederam a emergência do positivismo no século XIX europeu e deram origem a muitas das visões "metalinguísticas da História" que ainda hoje, aqui e ali tendem, apesar de tudo, a perdurar.


Lido o texto de Maria Amália Vaz de Carvalho, hoje, é, com efeito, quase irresistível a tentação de questionar instintivamente: Maria Amália Vaz de Carvalho, cujo nome foi escolhido para a designação de um dos mais prestigiados liceus femininos da capital lisboeta um caso de... machismo?

Obviamente, a esposa [e depois jovem viúva] do poeta Gonçalves Crespo foi, na visão que teve da Mulher, um fruto natural das concepções do seu tempo em matéria de identidade [e/ou de estrutura biológica] de género [e até, em termos mais amplos, de condição humana] que teve---necessariamente, de resto---de fazer passar para a sua importante obra de pedagoga e educadora.

Está, por conseguinte, de um modo muito claro, longe de constituir propósito de quem aqui a cita proceder a qualquer absurdo 'julgamento' a posteriori das ideias de Maria Amália Vaz de Carvalho [aqui contidas na obra "Cartas a Luisa"] mas tão somente demonstrar o caminho que foi preciso percorrer até se alcançar o quadro de igualdade [formal, pelo menos: efectiva, é outra coisa...]

Exactamente ao contrário [quero voltar a sublinhar isto de modo muito claro, muito particular e muito terminante] para o tipo de abordagem marxista do real e especificamente da História que pretendo que seja em todos os casos a que de qualquer delas faço, nada do que sucede no tempo [no tempo político, no tempo cultural, no tempo social, no tempo civilizacional] é organicamente dissociável desse mesmo tempo em que ocorre, num processo contínuo de interacção dialéctica onde toda a realidade "é feita", é construida e é enviada [sempre inevitavelmente... por construir] para o futuro onde o processo prossegue sempre, tão activa quanto ininterrupta e sempre organicamente.

Aquilo que aqui moveu a transcrição do texto de Joel Serrão incluindo nele a citação de Maria Amália Vaz de Carvalho foi, pois, precisamente dentro dessa linha dialéctica e sempre escrupulosamente dialectizadora da abordagem da matéria histórica, evidenciar como a modernização formal do País, nesta como em diversas outras matérias, é antes de mais um processo recentíssimo, não sendo por isso, no fundo, de estranhar, como também escrevi, que muitos dos fantasmas e dos espectros cultu[r]ais que cada um de nós foi tendo de eliminar e enterrar definitivamente no curso deste último século em inúmeros domínios e matérias constantes da nossa existência histórica e mental ou cultural comum persistam teimosamente em reapresentar-se de forma recorrente à nossa vivência inconsciente [mas, não-raro, perfeitamente consciente, também!] colectiva ainda hoje e em muitos casos sem que disso [e do que isso pode em termos práticos significar] nos demos verdadeira conta.

Mas porque falei em Marx e porque o autor de "Das Kapital" representa assumidamente para mim um referencial estável de concepcionação das realidade, devo dizer que nem o própruio Marx estará possivelmente inocente de pré-juizo e meras convicções [ou "conviccionações" passando correntemente por juizos objectivos e sempre objectualmente argumentáveis .

É, pelo menos, essa a persuasão de Jean Barrué que, em "Bakunine e os «Anais Franco-Alemães» (1843)" escreve : "Bakunine pan-eslavista? Marx pan-germanista? São fórmulas de polémica exageradas ou caluniosas. Digamos que Marx era ferozmente anti-eslavo [artigos de «Nouvelle gazette rhénane» em 1848-1849, são testemunho); mas digamos também que Bakunine foi várias vezes anti-alemão.

O seu ódio ao pan-geramanismo, ao Estado e ao militarismo prussianos, estendeu-o ao povo alemão em geral, ou utilizou fórmulas, por vezes, confusas. Na «Confissão», fala com complacência do ódio natural do eslavo ao alemão"


[Cf. Jean Barrué, "O Anarquismo Hoje", trad. port. de José Gabriel, ed. port. Assírio & Alvim, Cadernos Peninsulares, nova série, nº 17, Lisboa 1976]

[Na imagem: Capa da edição original de "Pride and Prejudice and Zombies" de SethGrahame- Smithe]

Sem comentários: