domingo, 12 de setembro de 2010

"Questões de Linguagem" [Por rever]


Há muito que defendo a ideia de que a televisão [antes ainda do computador] introduziu nos nossos modos tópicos de conceber e, sobretudo, de 'usar a realidade' [e, dentro dela, a própria linguagem que utilizamos para representá-la e, em geral, nos relacionarmos com ela] poderosíssimas alterações de conteúdo de que nunca mais recuperámos [ou diria eu: de que nunca mais nos recompusemos] como indivíduos e como cultura.

Passou-se, na essência, de um paradigma de "cognicização" [e, de uma forma mais lata, de "cognicionalidade"] em que a inteligência humana desempenhava, de alguma forma, pelo menos, potencial, sempre, de um modo ou de outro, o papel do sujeito [na medida em que era ela que impunha aos mecanismos quer objectivos, quer subjectivos ou subjeccionais de cognicização o seu próprio tempo de apropriação inteleccional---e, assim, teoricamente, ao menos, de facto---crítica" da realidade para um outro paradigma em que, exactamente ao invés, eram os mecanismos de cognicização, sobretudo os de natureza mais claramente objectiva e exterior, que impunham ao indivíduo um tempo não apenas exógeno mas também único comum [comum a todos os indivíduos de uma mesma comunidade]---um tempo que, além de levar 'a reboque de si' a consciência [os mecanismos individuais de 'conscienciação da realidade' e, por extensão, numa segunda fase, de conscienciação tout court] fazia tendencialmente da consciência, por isso mesmo, graças a essa dinâmica inversional dos mecanismos tópicos de 'conhecimento', um mero "livro de bordo" ou simples "ledger" dos usos cultu[r]ais, sociais etc. da realidade.

A possibilidade de controlar e gerir os tempos [a temporicidade cognicional ou mesmo cognicionante] era, pois o que distinguia, não tenho dúvidas em dizê-lo, os modelos a que poderíamos chamar "tradicionais" [activos] de conscienciação dos que lhe sucederam e que possuem, pois, caracteristicamente, uma natureza in/essencialmente passiva, secundária, instrumental, praticamente incidental e topicamente inerte.

A percepcionação do real via televisão [todo o paradigma cultural que usa a televisão e, em geral a "imagem significada" como referência estável indirecta ou directa de representacionalidade do real] caracteriza-se a meu ver por agir em onda [utilizemos um palavrão---possivelmente...--- esclarecedor: em "onda gestáltica"] insinuando-se na consciência na forma [mais do que no conteúdo] de uma "núvem sémica" indiferenciada e homogénea de que é muito difícil reconstituir autonomamente as componentes particulares, composicionais, e, por conseguinte, em geral, o respectivo funcionamento enquanto aparelho, digamos assim.

Como professor, não ignoro que este 'paradigma teorizante e apropriacional' passou a dado passo a ser, em abstracto, ensinado formalmente nas escolas sob designações... epistemologicamente "nobilitantes" como "functional", "structural" e por aí adiante, formalizando, assim, um modo tópico, substantivamente cultu[r]al, de representar não apenas a realidade como o próprio Eu e a consciência, enquanto coisas, enquanto 'objectos-em-si', a si próprios.

O que eu quero, muito claramente, dizer é o seguinte: quando como método e até como "cultura", se recorre a este modelo global "construtivista" e exógeno, de "reconstituir criticionalmente" a realidade, partindo de uma ideia ou até impressão do real como todo e não caminhando gradualmente para uma visão efectivamente crítica do todo, o resultado é que é todo o possível funcionamento substantivo do real que é "posto entre parênteses", "empoché", tendendo o real a ficar limitado a uma existência meramente automática e simplesmente reflexa [não reflexiva] na consciência daquele que, por tudo isto, não figura já como sujeito, senão que, na melhora das hipóteses, como... "objeito" ou simples "subjecto" do próprio Conhecimento.

A esta cultura que coloca em última instância, a geometria do conhecimento no lugar da ecologia do mesmo [a descrição no lugar da reconstrução pontual e incondicionalmente crítica] poderíamos por isso mesmo chamar uma "cultura geométrica" por oposição à natureza muito mais "algébrica" e efectivamente matemática [e "matematizante"] que, no plano da pedagogia e da didáctica das línguas tinha a "Gramática" por centro e modelo informador.

Numa sociedade massificada, os modelos de percepcionação do real viajaram, [num certo sentido, ao menos quantitativo mas também, de um modo ou de outro, tópico] muito naturalmente da periferia para o centro, i.e., da sociedade para a respectiva Cultura, do "entertainment" para a Escola.

A propósito desta questão da migração dos modelos estáveis de apropriação/representação do real da periferia para o centro, há, entanto, a assinalar algumas singularidades; vou referir duas: a primeira, é que passou, a dada altura, a existir na sociedade em que vivemos uma espécie de movimento de marés de sentido radicalmente oposto, polarmente contrário; duas culturas [e dois modelos de percepcionalidade a partir dos quais vai organizar-se, em última análise, a própria divisão da sociedade em classes] numa só, virtual: por um lado, uma direccionalidade que vai, como vimos, da periferia para o centro, da agnosia para domínios como a Pedagogia e a Didáctica que são áreas especificamente técnicas, contribuindo-se, desse modo, para manter a ilusão de uma organização democrática obtida, no entanto, pela desconstrução organizada da possibilidade de uma verdadeira democracia do conhecimento e, no limite, de uma [porém sempre reclamada!] "Gnoseotopia" que tudo no modelo de sociedade ocidental e no modo como ela está, de facto como de direito, organizada nega---e impossibilita; por outro lado, uma verdadeira micro-sociedade do conhecimento [do verdadeiro conhecimento] subsumida ao modelo económico e, portanto, inacessível enquanto conteúdo mas também enquanto forma ao conjunto da sociedade.

Este um aspecto singular que decorre do modo como o paradigma está organizado; outro, dava-no-lo há dias um analista na imprensa. Num texto intitulado "Hollywood reencontra a comédia" [cf. "Diário de Notícias" de 12.09.10] falava João Lopes do que considera ser uma espécie de 'resgate' do valor e do significado culturais da televisão [que é algo que a mim a mim, pessoalmente, devo dizer, se me afigura francamente discutível mas é uma opinião legítima, a do crítico, como é evidente] por oposição ao cinema onde, argumtnta João Lopes, de forma paradoxal, terá ocorrido um fenómeno inverso de degradação e aviltamento, de "debasement", diria um inglês ou um americano.

Tenho, como disse, sérias reservas sobre a natureza típica e tópica desta "troca": é verdade que o cinema se tornou, à semelhança, aliás, do que ocorreu das mais diversas formas na sociedade moderna e pós-moderna em geral, num mero suporte funcional da tecnologia e, em diversos casos, enquanto forma de expressão estética, refém dela, até.

Duvido é que se tenha "deslocado" para a televisão [de modo a ver nela reproduzidos os Bergman, os Fellini, os Visconti, os Fritz Lang, os Kubrick ou até os Hawks, os Fords e os Hitchcocks] que fizeram do cinema uma Arte.

É um facto que algumas séries televisivas abordam hoje temas que, possivelmente porque grande parte do "consumo" de entertainment se movimentou para o espaço virtual 'puro' possuem, apesar da linguagem que utilizam para serem narradas, fugiram do cinema ou abertamente imbecil ou fortemente marcado pelos "cheap tricks" tecnológicos "pour épater le bourgeois".

A verdade, porém, é que nada de essencial mudou efectivamente no plano estritamente gramatical da linguagem televisiva [um discurso in/essencialmente "útil" e funcional] assim como nada de igualmente substantivo se alterou no plano das relações do indivíduo com o real não se vendo como da televisão possam partir os fundamentos de qualquer mudança relevante neste âmbito verdadeiramente crucial dos padrões de abordagem da realidade e de autonomização da consciência ou do sujeito relativamente ao objecto ou objectos do real.

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