sexta-feira, 18 de junho de 2010

"Morreu Saramago"


Morreu José Saramago! Morreu aquele que, para mim, foi [por razões que adianto esclareço] o 'Picasso da escrita portuguesa contemporânea'.

Por uma razão qualquer que não consigo [e nunca consegui, aliás, identificar com precisão], as Artes e a Cultura em geral parecem sempre [não sei como dizer] "andar aos pares dentro delas mesmas".
Mover-se na História e na sociedade ou sociedades... aos pares.
É [será!] uma forma de "respiração cultural", de "ofegar existencial, cosmovisional e epistemológico" natural, posso, talvez, permitir-me supor.
Uma modalidade necessária e natural de dialéctica, talvez---reproduzindo num ambiente [e numa espécie de ritmo!] dual microcósmico aquela que é a forma ela própria natural da relação da Cultura, das elites cultu[r]ais, com as sociedades onde aquela é produzida---naquelas em que ainda o é e que já não são, como se sabe, infelizmente assim tantas quanto isso...
Seja como for foi sempre aos pares que me pareceu que apercebíamos, como indivíduos e até como sociedade ou sociedades, a História e mesmo, por vezes, num plano mais abstracto, metafísico ou para-metafísico, a realidade de uma forma mais ampla, mais lata.

Percebemos e auto-representamos ou auto-equacionamos talvez instintivamente, no fundo, o Romantismo, por exemplo, como a dialéctica que estabelecem [ou pode teóorica e criticamente admitir-se que estabelecem] entre si [e ambos com a cultura e o pensamento nacionais---seja lá o que for que isso signifique hoje] Herculano e Garrett.

Percebemos e auto-representamos a Poesia contemporânea portuguesa, por outro exemplo, como a dialéctica conceptual e cosmovisional que configuram e reproduzem entre si as figuras simbolicamente máximas de Eugénio de Andrade e Herberto Helder.
Para mim [que leituro muito mais do que leio...] os autores de que gosto [e alguns de que não gosto: aí está outro exemplo de... "parificação dialectiforme"...] a Poesia espanhola contemporânea é a que descreve um arco em torno da sociedade mental hispânica peninsular cujos polos são Lorca e Machado.

Ou que, no caso da pintura, representam os já referidos Picasso e Dali.
Ora, recorrendo a este simile operativo, Saramago foi o Picasso das letras portuguesas contemporâneas e como o génio de Málaga, teve o seu Dali na pessoa [e na obra] de Lobo Antunes.

Saramago foi, com efeito, o artista que veio da terra e que regressa frequentementemente [que regressa recorrente, ciclicamente] à terra para com ela dialogar.
Para agitá-la e interpelá-la.

À maneira das grandes referências cultu[r]ais dos séculos XIX e XX---os Hugos, os Zolas, osd Sartres, as Beauvoirs---Saramago não teme questionar o Político e é sempre, de um modo ou de outro, pelo Político [entra na Literatura e assegura para si e para a sua Obra um lugar definitivo nela.

Tal como Picasso, até quando questiona a Forma, Saramago é interveniente e político.
Fá-lo interpelando toda a realidade a partir dela.

Ao contrário de Dali ou Lobo Antunes [assumo aqui definitivamente, no caso do autor da "Jangada", a polaridade entre ambos num sentido que está, todavia, é preciso que isto fique bem claro e bem expresso, muito para além da questiúncula/inveja pessoal e/ou da maledicência paroquial que os instrumentaliza e menoriza a ambos!]; ao contrário, dizia, de Dali e Lobo Antunes que são sobretudo engenheiros da cor e da palavra, respectivamente: "engenheiros do próprio talento"---"engenharia textual" é o que em Lobo Antunes passa hoje naturalmente por Literatura...---Saramago é um trabalhador dessa mesma Cultura, un "jeune homme du peuple", como diria Vaillant, não "dans la Révolution" [ou não directa e, sobretudo, não primariamente "dans la Révolution"] reportando-me ao título célebre do autor de "La Loi", mas "dans les lettres", um homem-oficina que reedita o labor e a carpintaria literária e social da tradição dos activos e atentos Martin Du Gard da minha infância e adolescência, magicamente trazidos, agora, pela 'saramaguiana mão', para a minha maturidade...
O criador do "Memorial do Convento" representa, para mim, numa palavra, sobretudo, o agitador necessário das ideias---e, por fim, também, o 'Herculano dos séculos XX e XXI' ["ser Herculano", eis o que parece ser o destino trágico das pessoas de espírito e em geral verticais entre nós!...] que encontrou no Mediterrâneo espanhol o seu outonal Vale de Lobos quando percebeu que o cancro da vulgaridade e do obscurantismo se tinha tornado definitivamente numa verdadeira política de Estado e num adversário invencível porque omnipresente [a vileza é a inteligência dos medíocres]: no "Deus das moscas" que a sociedade portuguesa, de Soares a Cavaco ou de Lopes ao inominável Sócrates tragicamente adoptou para se representar.
Deixa uma Obra de que alguns gostarão e outros não.

Mas deixa, sobretudo, um lugar vazio numa arena ideológica e, em geral, intelectual e cívica, onde era já ao que tudo indica o "último [e também mais solitário e melancólico] dos justos"...


[Na imagem: Saramago por Vasco]

2 comentários:

Ezul disse...

O que senti, quando me deram a notícia,foi um enorme receio por este País. Haverá quem lhe faça homenagens, agora: os que são sinceros e aqueles em que não acreditaremos. Haverá homenagens, sem dúvida! E que vozes ainda ouviremos clamar bem alto e em tom discordante por esta terra?

Carlos Machado Acabado disse...

Ezul: eu permito-me lembrar que às vezes não há pior embaraço nem pior humilhação do que certas "homenagens"...
O que me incomoda a mim especialmente não são tanto os que discordam: são os que memorizam, apoucam e insultam, ao descobrirem, de repente, que, afinal, também... "admiram"...
DESSES! Desses é que é preciso fugir como 'o diabo da cruz'...