sexta-feira, 31 de outubro de 2008

"Um «projecto» antigo"

Nas três imagens imediatamente abaixo: D.H.Lawrence, Brendan Behan e Maria Edgeworth

...é o de escrever e (ajudar a) encenar uma versão dramática de dois textos que reputo (diferentemente, embora) fascinantes: um, o romance/reportagem de Brendan de Behan, "Borstal Boy"; outro, o 'clássico' de David Herbert Lawrence, "Lady Chatterley's Lover".

A "Borstal Boy" voltarei, talvez, com mais pormenor, um dia.
Nele seduz-me, porém, sobretudo, a desesperançada "anglicidade"---onde consigo ver algo que, por exemplo, Mark Harmon, o realizador de um filme notável "Purely Belter", viu distintamente na sua análise da Grã-Bretanha pós-Thatcher: a horrível (e dolorosamente parda!) decadência, o vazio referencial, a infixidez existencial absoluta, em suma, uma espécie de amarga transposição para o presente da picaresca espanhola mas, sobretudo, das condições económicas e sociais específicas que permitiram que ela se gerasse.

Fico-me, hoje, pela obra de Lawrence.


Mark Harmon

Nela, vejo eu (um pouco como em "Fu Matia Pascale" de Pirandello ou em "Castle Reckrent" de Maria Edgeworth) um retrato interessantísimo da ascensão da classe burguesa ao poder (da sua "prise du pouvoir", como titulou, um dia, num filme célebre, Rossellini a propósito de Luís XVI): no marido inválido, é possível discernir a representação da própria aristocracia britânica: uma classe ela mesma doente, simbolicamente incapaz de "mover-se" ou "deslocar-se" na História onde a tal "tomada de poder" pela vigorosíssima mas, no fundo, puramente animalesca burguesia a apanha completamente imóvel e já incapaz de reagir.

Luigi Pirandello

Como em Pasolini, por exemplo (o interessantíssimo Pasolini!) a sexualidade seria o terreno simbológico da própria luta de classes. Entre a aristocracia decadente (e impotente) e a burguesia cheia de uma vitalidade incontrolável e violenta, im/puramente animal (representada pelo guarda-caça: o usurpador que, começando assalariado, se torna bruscamente proprietário do seu anterior "proprietário"), longamente hesitante, uma fascinada "Lady Chatterley", (os sectores progressistas, originalmente abertos à mudança, da própria aristocracia) seduzida pelo calor do vigoroso animal que a fascina com toda a carga seminal da sua própria, no fundo incontrolável, bestialidade).

Com o tempo, as contradições de Lady Chatterley vêm ao de cima, simbolizando o generoso fôlego revolucionário burguês, muito rapidamente naufragado através de múltiplas cedências e em resultado de naturais contradições próprias: Lady Chatterley, assustada com o escândalo que a sua ousadia inevitavelomente causará, não tem coragem para assumir integralmente a rebeldia que começa por sentir, deixa o guarda-caça só, entregue às forças punitivas (repressivas) da "ordem" e volta, desencantada embora, amargurada, profundamente marcada pela culpa (que é a culpa de toda uma elite revolucionária burguesa inicialmente "apocalíptica", a prazo "re/integrada"...) para os braços do marido inválido (a burguesia assediada, permanentemente ameaçada pelo espectro da Revolução) acabando (na "minha" versão do romance de Lawrence) encerrada com ele no sombrio solar ("manor") em ruínas ("à Polanski", o Polanski de "Repulsa", "à Buzzatti/Zurlini" d' "O Deserto dos Tártaros" ou "à António Patrício" d' "O Fim"...) beata e frustrada, meio louca, neurótica, histérica, transpondo para as obliquamente erotizadas rezas com que enche auto-hipnoticamente os dias todo o ressentimento com a vida que a sua própria cobardia e as suas inúmeras e insanáveis contradições lhe impuseram.

Tal como eu concebo esta "versão", a partitura seria ("obrigatoriamente"!) de José Mário Branco, o único cantor "do 25 de Abril" que permaneceu até ao momento estruturalmente honesto e fiel às suas convicções e princípios com intervalos cíclicos" de Emanuel Nunes...

José Mário Branco

Sem comentários: