sexta-feira, 31 de outubro de 2008

"Abril é sempre que um homem quiser: breves reflexões pessoais sobre a questão da Democracia-hoje"



Uma das circunstâncias que mais pode contribuir para a degradação substantiva da democracia entre nós (interessa-me aqui, sobretudo, por óbvias razões de proximidade material e envolvência) o 'caso' português) é a ausência demonstrável de "biodiversidade ideológica", "cosmovisional", institucionalizada (em partidos ou grupos capazes de intervirem, de forma verdadeiramente efectiva, na vida nacional) observável, hoje-por-hoje, na sociedade portuguesa.

Sucede, por outro lado, que parece cada vez menos possível manter por (muito?) mais tempo a ambiciosa ficção de que pode alcançar-se a "biodiversidade" em causa através da "alternância" (puramente 'virtual') entre as alas "conservadora" e "social" ou mesmo... "socialista" (!) do regime, assegurada por sufrágio periódico.

De facto, é cada vez menos possível sustentar acreditavelmente tal ficção.

Há, aliás, diria eu, muitas maneiras de reconhecê-lo ou, se preferirmos dizer assim, de equacionar a implícita admissão da impossibilidade em causa---de todas temos, no fundo, de um modo ou de outro, ouvido e visto "exemplos" esclarecedores na imprensa: a verdade, é que ela, a impossibilidade em causa, constitui sempre, em última instância, um dado absolutamente incontornável da nossa (aliás, paupérrima!) 'existência política' comum.

Dito de outro modo: o 'regime' precisa (urgentemente!) de estímulos.

Precisa de mais: precisa, se calhar, mais do que de estímulos apenas, de provocações.

Isto é: tem absoluta necessidade de ser provocado!

De deixar-se provocar e/ou de reaprender a ser provocado, seguramente.

Uma das formas provavelmente mais eficazes de fazê-lo (isto é, de evitar o completo e indesejável fechamento senão mesmo apodrecimento cívico e político final do "regime") seria, por exemplo, através do reforço da intervenção na vida pública nacional dos partidos e organizações de indução teórica genericamente marxista, os quais desempenharam, como se sabe, um papel absolutamente determinante no imediato pós-25 de Abril no que respeita à mobilização global da cidadania e ao reforço da sua (fugaz, é verdade mas, ainda assim, essencial e potencialmente determinante) organização.

Partidos e organizações doutrinárias, ideológicas, poderiam, insisto, seguramente (re) trazer para a miasmática e pantanosa vida política nacional um novo sopro de reflexividade (directamente e por reacção)---algo de absolutamente essencial, a meu ver, numa fase da História nacional em que se torna cada vez mais clara a necessidade absoluta de refundar o 'regime económico-político' formente posto à prova, desta vez por uma crise profundíssima, capaz de tornar, no limite, obsoletos e inoperantes os velhos truques usados pelo capitalismo internacional para sobreviver e, sobretudo, para sobreviver-se.

Era Álvaro Cunhal que, com a aguda 'inteligência da realidade' que o caracterizava, costumava abrir alguns debates e sessões públicas em que participava com a leitura de uma série de propostas sonoramente "revolucionárias" (destinadas, pelo modo como ele as enunciava e no contexto argumentativo preciso em que o fazia, a suscitarem a reacção, pudicamente escandalizada, das audiências às quais eram---como dizer?---directamente "apontadas"); propostas essas que, vinha, ulteriormente, a saber-se nada mais eram do que pontos cuidadosamente respigados dos "programas" políticos de "pê-pê-dês", "pê-èsses", "cê-dê-èsses" e tutti quanti da fase "allendista" e "guevarista" e por aí fora de alguns deles.

Não se declarava, a dado passo, o próprio "pê-pê-éme", apostando obviamente na eufonia e na semelhança sonora (muito mais do que conceptual) com o comunismo... "comunalista" para "fazer face", então, à "concorrência" das várias sensibilidades confessadamente comunistas que à época gozavam de uma espantosa popularidade?...

O que eu quero dizer é que (como acontece tão frequentemente naqueles jogos de futebol em que uma equipa de maus praticantes e jogadores sem classe tenta chagar ao fim não perdendo por muitos procurando, para isso, "adormecer" o adversário com um jogo mole, sem criatividade nem espaços, sufocando o adversário com o marasmo táctico e estratégico); o que eu quero dizer é que, logo que se dá o refluxo conservador-capitalista, formalmente "democrático" (ou, pelo menos, "estrategicamente democratizado") de '75, de imediato as "capas" políticas instrumentais do 'novo' poder económico-financeiro (os partidos que representavam---e continuam a representar---o rosto político do capital que o fascismo se tornara objectivamente incapaz de "agenciar politicamente") passaram bruscamente de interessados em "mudar" (em... "evoluir") para empenhadíssimos, sim, mas em manter (e fosse a que preço fosse!) o statu quo entretanto alcançado com a sua própria vitória, militar e política, sobre as massas e a possibilidade de sedimentaão de um regime económico-político por elas real ou directamente determinado.

Ora, acontece que, a partir daí, desse ponto teórico de equilíbrio introduzido (volto a dizer: "estrategicamente") na História social e política da sociedade portuguesa pós-revolucionária, um dos segredos da actuação sistemista passou a ser utilizar a não-política como uma imagem, genericamente acreditável e idealmente sustentável, de "política", a fim, justamente, de evitar que a possibilidade de pensar demasiado a História pudesse pôr em perigo aquilo que lhe tinha custado tanto a alcançar...

Esses que, agora, fingiam que as objectivas desactivação/inactividade ideológicas e, no limite, a total estagnação reflexiva que aspiravam ver estabelecida por toda a vida social portuguesa eram não só "política" como "A" política eram, todavia, os mesmos que, ainda pouco antes (antes de Novembro de '75) berravam aos quatro ventos a sua fidelidade ideólogica a Marx e que não tinham o mínimo pudor (eles, que não passavam, em geral, de um bando de oportunistas extremamente astutos poupados aos perigos de "dissidir demasiado perto" por uma dourada ausência a quilómetros de distância e, genericamente, de gente muito má que passou a colar-se astuciosamente aos primeiros quando a falência do regime passou, por seu turno, a prometer a curto prazo pingues lucros a quem soubesse apanhar a tempo e "na estação certa" o combóio da "revolução"...); esses eram, dizia, gente sem vergonha que não hesitava em reclamar a trágica herança "allendista" ou, quando nada mais tinham para apresentar e vender na "feira dos embustes" que foi, para muitos, o ano de '74, a de Henri de Man, o "personalista" belga que foi o "abono de família" de muito órfão ideológico sem eira nem beira que nele achou um alibi inestimável.

Genericamente falando, pode sem errar afirmar-se que a brusca eclosão da ideologia entre nós em '74 obrigou, mesmo aqueles que da História não esperavam, de facto, outra coisa que não fosse "um bom lugar à mesa" da economia (leia-se: da desigualdade, da sociedade e da economia desiguais cuidadosamente "decoradas" com um discrero venerr de "democracia") de onde a sonsa filtragem "corporativa" do fascismo havia solidamente banido muito deles, a "terem" (oficialmente) uma ideologia, isto é, na prática, uma posição teórica sobre a realidade e, cumulativamente, a argumentarem (como podiam...) o seu próprio lugar na realidade---algo que a rígida ordem anterior (como a não menos rígida que lhe sucedeu e que vigora novamente hoje entre nós) tranquilizadoramente os dispensava.

E foram esses (os antigos "allendistas", os "comunalistas" teóricos de '74, os discípulos devotados desse excelente belga que foi de Man) que, como disse, mal lograram sentar-se à "mesa da desigualdade democratizada" manu militari em '75, se deram em banir objectivamente a reflexão política substituindo-as cuidadosamente por... campanhas eleitorais, muito mais "a seu jeito", com aventais de plástico e esferogáficas de "três-ao-pataco" a substituirem as ideias que era preciso justamente evitar que alguém pudesse vir a ter...

Perante isso, parece-me natural supor que a reactivação revolucionária estratégica da História passa hoje (eu diria:) 'passa hoje obrigatoriamente' pelo (re) despertar sistémico, prévio a tudo, da vida ideológica nacional, algo que (volto a dizer) poderia obter-se, desde logo, com o reactivar muito cuidado de muitas daquelas organizações como a "velha" U.R.M.L. (que só conheci de nome, aliás) ou da não menos "velha" O.C.M.L.P. (idem-idem, no ante-25 de Abril) ou ainda (sei lá! Podia citar tantas!...) do C.A.R.P. (m-l); da "velha" L.C.I. e por aí fora.

Todas elas organizações que (é preciso ter a coragem de dizê-lo uma vez por todas!) deram um contributo absolutamente essencial, pelo simples facto de existirem e de serem, de um modo ou de outro, ouvidas, por exemplo para a implementação de um processo de Reforma Agrária entre nós---proposta originalmente recusada, com receio de "aventureirismos" por muitos que vieram, afinal, a revelar-se essenciais na conduição do processo mas que (lá está!) só posteriormente vieram a aderir de forma entusiástica a ele, pressionados justamente pelo impulso poderosíssimo da acção da chamada "esquerda revolucionária" onde se integravam aquelas (e muitas outras, como a incontornável L.U.A.R.) organizações...

A atitude revolucionária passa hoje, numa palavra, pela reactivação estratégica dessas organizações, pois, ou dos herdeiros e herdeiras dessas organizações.

Passa com toda a certeza pela aposta determinada no enraizamento efectivo do Partido Comunista na sociedade portuguesa para o que, seria, a meu ver, fundamental a concretização prévia de dois pressupostos, desgraçadamente, ao que parece, porém, hoje-por-hoje, muito distantes:


a) a reestruturação das formas básicas, nucleares, elementais, de organização do Partido (falo especificamente da organização em células, com a análise cuidada da situação política em tempo real e a definição de estratégias e tácticas precisas a fim de lidar dinamicamente com os probemas e questões por aquela levantados
e


b) a implementação de uma imprensa própria (a venda da Editorial Caminho a um grande grupo económico pode ter tido, na prática, por um enorme tiro no pé relativamente à possibilidade ideal de se chegar directamente à sociedade portuguesa com uma mensagem e informação próprias); a implementação de uma imprensa própria com todas as dificuldades que o projecto implica, é verdade, mas destinada a fornecer uma visão das coisas naturalmente distinta (estruturalmente distinta!) da dos grandes grupos e interesses económico-financeiros situados, como se sabe, por detrás dos jornais mais lidos e relativamente a cujas propostas e pontos de vista não é possível, hoje-por-hoje, fazer chegar à Cidadania em geral resposta e verdadeiras alternativas.
Ou seja: o fechamento da via parece, hoje-por-hoje, um dado tão irrecusável como a realidade do próprio instante crítico a que o 'sistema' no seu todo actual chegou: a um autêntico "cotovelo" ou "esquina" da sua própria (conturbada!) História ou (acidentada, longa) 'crónica'.
A questão é que, se queremos abri-la, temos forçosamente de chegar às pessoas, às... "massas" como então (em '74 vulgarmente se dizia) com uma mensagem clara que deve, a meu ver, começar por ser 'pô-las a pensar', isto é, fazê-las (voltar a) sentir à semelhança do que ocorreu em '74, como uma necessidade poderos e inadiável a, a vontade de pensar mas, para tanto, é, por outro lado, essencial que recriemos, por todos os meios legítimos ao nosso alcance, os modos exactos de fazer-lhes chegar, a essas mesmas "massas", as matérias-primas para a reflexão, sendo absurdo pensar que elas lá vão ter" por obra e graça de algum, divino embora, Espírito (mais ou menos) Santo...
De fazer-lhes desde logo chegar a mensagem-revelação de que são efectivamente "massas" e disso não passam para o gélido, implacável, brutal sempre-metido-em-sarilhos "sistema" (ou "complexo") económico-político-financeiro...

Étienne Balibar, um exemplo de reflexão marxista 'independente'

Sem comentários: