Num "Público" (edição de 12.09.08, suplemento de Economia) detenho-me numa reportagem sobre 'a casa-forte mais poderosa do País' ou coisa que o valha (para confirmar o apodo basta consultar a imagem em anexo, reprodução da reportagem). Trata-se da casa-forte da empresa de valores Esegur, propriedade (informa o jornal da Caixa Geral de Depósitos e do Grupo Espírito Santo).
Faço-o (isto é, deter-me---incrédulo, fisicamente incomodado!---na notícia do "Público") indignado, como disse, perante a imagem incrivelmente escandalosa, irrecusável, material, da imensa desigualdade existente no (melhor dizendo: gerada pelo) supostamente "social" Portugal "socrático".
É, de resto, penso eu, difícil a qualquer pessoa (mesmo apenas com um mínimo) de formação humanista não sentir a mesma revolta e a mesma veemente indignação perante a imagem (volto a dizer: verdadeiramente obscena!) dos maços de notas ali entesourados bem como, noutro plano, perante a simples ideia da imaginação e da criatividade postas amoralmente ao serviço da, por sua vez, pornográfica acumulação de riqueza ali retratada.
De algum modo (bem real e bem substantivo, aliás!") é "aquilo" o mundo completamente "pós-moral" em que vivemos: um mundo que separou (ou dissociou ou desintegrou) já por inteiro a técnica (e o saber que ela necessariamente presupõe) dos respectivos usos sociais e políticos.
A técnica (o Conhecimento, qualquer forma de "inteligência efectiva da realidade") de qualquer juizo de valor (moral, social, político) que sobre ela possa (de facto, deva!) ser básica, elementar (elemental) e, por conseguinte, organicamente produzido.
A dissociação epistemológica e especificamente ética---eis a marca in/essencial da "nossa" época, "en fin de partie", como diria Beckett que (como Kakfa que evidentemente o "inspirou") sobre tudo isto escreveu com uma minúcia e uma clareza verdadeiramente cirúrgicas, 'definitivas' e exemplares.
Tudo o confirma, ilustra e objectivamente corrobora: o conceito de "Escola" ou de "escolicidade cultu(r)al e política, civilizacional": a Escola como grande armazém, em larguíssima medida passivo, onde vem ser continuamente depositado o conhecimento in/essencialmente inerte ou "inertizado", i.e. desactivado relativamente à sua "função"... neo-política e pós-democrática, pós-histórica, de re/produzir continuamente "valor" ou de se "mutar" continuamente nele; as grandes corporações, sobretudo multinacionais, essas sim, aparecendo na sociedade---e, de uma forma mais ampla: na História!---como as legítimas proprietárias das "enclosures" do conhecimento activo, autêntico, matéria-prima essencial de re/produção (como disse: contínua) de capital; o Estado (melhor dizendo: o pós-Estado!) emergindo, por sua vez, nessa mesma sociedade e nessa mesma História, como o "broker" (não sei se deva dizer "negligente" se, pelo contrário, "diligente" e activo!...) dos "interesses" privados; o Estado na versão "Estado almocreve" que é a forma que, para os diversos matizes do neo-liberalismo vigente, deve pós-modernamente assumir o "antigo" Estado-consciência saído dos ideais da Revolução burguesa de '89.
Um "Estado almocreve" gerido hoje por "desenvolvimentistas pós-morais" da mais... "pura" cepa, "fulaninhos neo-políticos" completamente amorais cuja única missão"... histórica é gerir ("com o prego a fundo", se possível...) a operatividade objectual contínua do 'sistema', para o que contam com a ajuda inestimável da "democracia" (completamente revista por eles e pelos seus pós-ideólogos do "comentário" político que dela fizeram já a "cola teorética" destinada a "grudar solidamente" a Política a uma Economia e ambas firmenente à "História" por eles concebida como um objecto global completamente imóvel no tempo.
A tal casa-forte da Esegur (ou lá como é que se chama "aquilo") trouxe-me à ideia tudo isto---e também esse belo "essor" de indignação e revolta cívicas (não! Políticas!) saído nos frustrados idos de '60 da visão (e da Cãmara!) de homens como Ralph Nelson (desigual como artista mas a quem devemos "coisas" verdadeiramente essenciais e admiráveis como esse fabuloso "Soldier Blue") ou Arthur Penn, o realizador de "Bonnie & Clyde" que vou hoje mesmo rever (e, de um modo muito particular, a sequência em que Clyde Barrow/Warren Beattie descarrega o seu revoltado revólver (a imagem 'alegórica' da sequência em causa podia perfeitamente ser: "Clyde Barrow's Act of Gratuitous Insubmission/Ejaculation: De 'L'Homme Révolté' À 'L' Homme Du Pistolet Revolté'"...
A essa esquência em particular vou revê-la, então, tendo presentes duas ideias/imagens: uma, a de uma sociedde onde há gente que vive com um euro (ou será um "neuro"?...) por dia; outra, a dessa casa-forte de pornográficos Tios Patinhas da vida real, criminosamente indiferentes à miséria que têm de sistemicamente semear a fim de construirem a ficção indecorosa da abundância e da "sociedade dela"...
[Os mais atentos visitantes deste blog não deixarão de observar o modo como eu ("à Godard", cf. "Histoires Du Cinema"...) "re/montei significadamente" as imagens apensas ao texto, 'pilhadas' elas mesmas da Net. Mostrando primeiro, os heróis do filme de Penn em plena glória, depois mortos (assassinados pelo 'sistema', um 'sistema que entesoura estolidamente fortunas indiferente à pobreza em volta...) e fechando através do recurso narrativo a fazer intencionalmente re/coincidirem ponto-por-ponto as personagens da ficção (ou da... subversão?) com os respectivos suportes reais, re/erguidos estes já, simbólica ou simbologicamente, do mundo dos mortos, de novo vivos, ressuscitados a fim de virem em pessoa ainda uma vez assombrar o próprio 'sistema' que os executou.
Já agora: quanto a mim, se, depois disto, não me prenderem, não sei francamente o que possa levá-"los" a fazê-lo...]
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