sábado, 11 de outubro de 2008

"Diabruras preventivas"


Na revista semanal do "Diário de Notícias" (do de 14.09.08, para ser mais preciso) que acidentalmente me veio parar às mãos, dou com uma crónica, imagino que regular, da jornalista Fernanda Câncio incidindo sobre as alterações ao Código do Processo Penal e intitulada "Leituras Preventivas".

Devo dizer que não conheço a jornalista em questão e que, dela, que me recorde nunca havia lido o que quer que fosse que me permitisse formar sobre ela uma, mesmo apenas provisória e muito tentativa, opinião. A verdade, porém, é que, se pretendesse fazê-lo a partir do texto em questão, receio ter de admitir ("for all it is worth"...) que tal opinião não seria previsivelmente muito lisonjeira.

Há, de facto, subjacente à argumentação da jornalista (visando desfazer o nó de conexão entre as referidas alterações ao Código citado---designadamente no que se refere às limitações introduzidas nos pressupostos jurídicos para a prisão preventiva---e o aumento da criminalidade) um sofisma que, a meu ver, inquina, por completo, o debate pela jornalista proposto na sua crónica.

Ou seja: defende a Autora nomeadamente que,


não houve qualquer diminuição de presos em resultado das alterações introduzidas naqueles já referidos pressupostos para a prisão preventiva


e que, cumulativamente,


não é documentável qualquer aumento substantivo da criminalidade cometida por quantos dos presos preventivos terão sido libertados, desde que as alterações em causa tiveram lugar.

Perante isto, onde está, pois, o sofisma?---perguntar-se-á.

A meu ver, basta atentar minimamente nas aduções da Autora do texto para surgir, de imediato, a necessidade de, no mínimo, pôr duas questões:

Primeira: remetendo para a questão de que não tem de haver um aumento da criminalidade imputável aos preventivos libertados para se poder pensar que as alterações à lei possam, ainda assim, ser ou permanecer, em tese, más.

Porquê?

Porque aquilo que muitos (a começar por mim próprio) argumentam é que o "sinal" dado à sociedade é mau, é negativo, independentemente de os criminosos serem os antigos preventivos ou outros quaisquer que até podem por hipótese estar agora a iniciar-se no mundo do crime por se sentirem exactamente tentados a fazê-lo em resultado do tal "sinal" errado, facilmente confundível com demasiada tolerância relativamente à criminalidade, dado pelo legislador.

Ou seja: o facto de não serem os mesmos criminosos que cometeram os antigos crimes e estiveram preventivamente presos pela fundada suspeita de os terem cometido e o cometimento dos "novos" crimes não prova em si mesmo o que quer que seja, ao contrário do que argumenta a articulista que naquela (não) coincidência entre crime e criminosos incompreensivelmente centra em surpreendente exclusivo a sua defesa das alterações.

Segunda: surpreende (a mim, seguramente, surpreende) a adução de que não houve qualquer alteração nos valores ínsitos à população prisional em consequência das ditas alterações. E surpreende porque, se não houve, a pergunta só pode ser: então, para que diabo serviu ela?!

Não se compreende, com efeito.

A alternativa parece, nas aduções da Autora, limitar-se a ser: não sendo má, a medida é "apenas" e de facto insubstantiva, imaterial e irrelevante, senão mesmo objectivamente inexistente na medida em que não produz demonstravelmente consequências.

Surpreendente, no mínimo, não?

Termina a Autora declarando-se implicitamente incapaz de determinar (e cito) "uma causa directa para a criminalidade".

Pessoalmente, devo dizer que partilho, decididamente, com ela da referida (desesperante) incapacidade. Agora, uma coisa eu posso dizer: é que é, seguramente, consultando (e consultando com atenção, com rigor, com seriedade) as estatisticas da pobreza e do desemprego em Portugal, muito mais do que folheando, mesmo com atenção e minúcia, outras quaisquer que poderemos aspirar a aproximar-nos ao menos de uma resposta conclusiva e substantiva, capaz de nos ajudar a já não digo resolver, mas pelo menos ajudar a minimizar e a contribuir para que inflictam de forma relevante os números da criminalidade.

É mesmo, creio eu convictamente, a única possibilidade de fazê-lo.
[Na imagem: Protágoras, o sofista]

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