quinta-feira, 2 de outubro de 2008

"Escândalo(s)..."

Absolutamente escandaloso e, pior ainda, significativo o conteúdo de uma notícia do "Público" de 01.09.08, dando conta da existência de três ex-ministros ligados a intervenções do Estado no domínio das obras públicas, agora do lado de empresas privadas que com o Estado português celebraram contratos.

Escandaloso, diria eu, o conúbio consistentemente estabelecido, instalado, entre os interesses estr(e)itamente privados e o que é teoricamente suposto ser a defesa do interesse público.

O conteúdo da notícia reforça uma velha convicção ou uma velha teoria minhas (que não são, de resto, apenas minhas mas enfim...) de que aquilo a que chamamos tão vulgar quanto, sobretudo, facilmente "democracia" em Portugal acabou por consagrar-se (in) essencialmente, na prática, como um paradigma económico-político objectivo em que o Estado opera, na in/ essência, idealmente, como uma grande agência central de corretagem uma teoria de "brokers" circulantes que, ou vêm constantemente do privado ao público manter activa precisamente a tal in/essência significadamente "broker" do Estado, i.e., reforçar continuamente a capacidade de actuação estável e efectiva dessa (in) essência ou que, em alternativa, formulam à partida o projecto de aceder ao mundo do interese privado, via Estado.

Em qualquer dos casos, é óbvio, o modo como o Estado funciona em 'fim de linha' sempre como uma mera placa rotativa ou simples peão e instrumento sempre (ao menos, tendencialmente) instrumental de fomento contínuo da actividade económico-financeira privada, confundindo-se (e é isso que na base define o novo paradigma neo-liberal de "Estado" ou de estaticidade em abstracto) o "sucesso" e a "eficácia" políticos desse mesmo Estado com o nível de "funcionalidade" alcançado naquela tarefa, em si mesma politicamente espúria e apócrifa, de viabilizar política (ou, como me parece mais apropriado dizer politiformemente) o negocismo.

Na prática, está instalado, em meu entender, um sistema económico-político (um "complexo político-financeiro") com o estatuto supra-político ou hiper-político de "Civilização" onde se acha objectualmente institucionalizado, de forma tessitária, aquele que foi o velho sonho "economotópico" dos autoritarismos políticos dos anos 20 e 30 do século passado (foi para isso que eles surgiram, de resto) de extinguir definitivamente as classes, unidindo-as mas agora não já pela força de um apasrelho político ou politiforme formal (passe a eufonia) mas apenas com recurso à afirmação concreta do desenho/desígnio teórico de um Estado que viabiliza centralmente o privado como suposta alavanca funcional Ee, mais grave ainda, pressuposto primário do sucesso do público.

Com o argumento de a missão do Estado ser a de revitalizar continuamente a economia mas apenas como instrumento objectivo de revitalização da própria sociedade como todo (com recurso à ideia ou ao princípio pós-político de atrelar o Estado ao interese privado e de fazer, portanto, depender o sucesso do Estado do sucesso anterior condicional do privado, o que se fez ao Estado nação moderno saído dos ideais da Revolução Francesa foi (a) funcionalizá-lo e secundarizá-lo (quase?) integralmente a pretexto, justamente, de... repotenciá-lo e (pós) "modernizá-lo" ulteriormente, para fazer face à História assim como (b) refundá-lo abstracta ou como figura política teórica ou teorética e ideológica.

Sem que nos fosse, como sociedade, abertamente revelado, foi-se operando (operou-se, com o triunfo do paradigma neo-liberal) uma espécie de golpe-de-estado continuado no próprio Estado, na Civilização, consubstanciado na radical transformação dos papéis recíprocos e orgânicos da "economia" e da Política" nas sociedades do chamado "Ocidente" democrático.

Essa é (assumidamente!) a minha tese: a do "golpe de estado civilizacional" que consiste, repito, na base ou na in/essência, em inverter e manter consistentemente invertidos, o papel orgânico das componentes materiais, objectivas ou objectuais, da civilização de modo a pô-las a funcionar na base exactamente às avessas do que tradicionalmente sucedia mas também às avessas daquilo que, na teoria, se diz ser o "movimento natural eco-político da própria sociedade" ou mesmo, no limite, "da própria História".

Eu sempre defendi, com efeito, que ao contrário do que afirmavam de forma sonora, ruidosa, os teóricos do "pós-História" ou da "neo-modernidade (pós) ideológica" o comunismo é de facto mas também de direito o oposto, não só do capitalismo como muito concreta e muito especificamente do fascismo. No fascismo, com efeito, e ao invés da ideia que se tenta (que tentam os tais "teóricos"!) fazer passar, o Estado não detém realmente o poder. O Estado veicula e potencia, consolida instrumentalmente porque institucionaliza politiformemente o poder, o que é uma coisa muito diferente.

Hitler, por exemplo máximo, não se impôs à Alemanha do grande capital-económico financeiro: Hitler foi cooptado por esse grande capital quando quis ou quando pôde ou foi capaz de perceber que tinha de adaptar o seu truculento paradigma de intervencionalidade política ou (volto a dizer) politiforme original à estratégia precisa de consolidação do poder efectivo pensada e idealizada por parte desse mesmo grande capital.

O poder de Hitler, o suposto poder discricionário do monstro austríaco, era, na realidade, enquanto o regime não entrou definitivamente em roda livre, o preciso poder de viabilizar continuamente um modelo económico-financeiro e político desejado pelo grande capital alemão de conquista de mercados e de fornecimento de matérias-primas.

Apenas e realmente isso.

Hitler 'veio à rua' hipnotizar as massas, ganhá-las ao socialismo, mas teve de matar, real mas também simbolicamente, Roehm e encerrar formalmente o seu período "callejero" de afirmação pessoal a fim de cumprir o pressuposto exigido pelo grande capital alemão para escolhê-lo como expressão política sua.

Mas, repito, o poder de Hitler, o poder do Estado nazi, é o poder estr(e)ito de viabilizar a estratégia de tomada do popder por parte do grande capital.

Tal como virá a suceder posterormente com o regime de "demomorfia instrumental" neo-liberal corrente?
É óbvio que sim! O neo-liberalismo, perante o fracaaso da experiência histórica do "capitalismo integral", do "capitalismo completo ou total" ("Das totale Kapitalismus" como eco estrutural e estruturacional da "totale Krieg" de Luddendorf...) compreendeu astutamente que tinha de colocar o próprio desejo, meticulosamente cultivado e cirurgicamente preparado a nível dos extractos subjeccionais e/ou cultu(r)ais das sociedades "ocidentais", no exacto lugar onde o paradigma do "capitalismo total" imposto manu militari colocava exacta mas também insustentavelmente (como historicamente se provou) essa mesma manu militari.

Ou seja, a inversão das componentes orgânicas da sociedade é herdada integralmente pelas democracias parlamentares ocidentais" dos regimes autoritários do início do século XX: aquilo que as "democracias" fazem é alterar por dentro os mecanismos de percepção individual e colectiva, cultu(r)al, da própria realidade.

Para tanto, vão agir estrategicamente não no plano de transformação substantiva dos paradigmas objectuais de reali(ci)dade mas ao nível dos automatismos de formulação de representações abstractas, (in) cultu(r)ais dessa mesma realidade.

A minha... tese é, muito claramente, que não é a História (nem a Política nem a Economia e por aí fora) que mudam de facto na passagem do fascismo para as democracias no pós-guerra: o que realmente muda é o olhar que sobre elas é induzido, apostando no envolvimento do desejo recuperado para um papel político que dantes não tinha porque passou a ser preciso conceber modos operativos novos de negociar social, histórica e politicamente com as sociedades de massas, induzindo-as "pela positiva", a cooperar com a sua própria funcionalização e instrumentalização.

No comunismo, ao invés (e, por isso, as "democracias instrumentais" ou "demomorfias funcionais" o odeiam e pretendem descreditá-lo confundindo-o no espírito dos incautos com o próprio fascismo) o Estado tem de facto poder. Não só poder: ele detém O poder. Detém-no, gere-o, redistribui-o socialmente.

E é isso que, por razões óbvias, o neo-liberalismo não pode tolerar: que a "Civilização" não passe obrigatória e verticialmente por si, passando nuclearmente por si a gestão e a outorga do poder. Das modalidades instrumentais e possibilitantes do poder.

Aquilo que eu defendo, pois (e é com essa ideia ou esse projecto no espírito que olho para o escandaloso conúbio entre a economia e a "política" nas diversas sociedades "demomórficas" (pós) modernas é que é uma exigência não apenas elementar mas realmente elemental de democraticidade de um sistema político que a "separação de poderes" encontre expressão efectiva e operativa não apenas ntre o poder político e o poder judicial, por exemplo, mas entre este e o poder económico.

Em teoria, existem, claro formas institucionalizadas, político-juridicamente consagradas de separá-los. A verdade, porém, é que, como se constata por npotícias como a do "Público" de 01.09.08, elas não operam.

Ou não operam sempre.

Ou operam mal, imperfeita e incompletamente.

Uma verdadeira democracia não pode existir para, como tantas vezes tenho repetido, "legitimar instrumentalmente" um sistema económico-político fixo, completamente imóvel no seu centro. Uma verdadeira democracia não tem como função histórica, política, civilizacional manter esse sistema económico-político solidamente preso à História e esta solidamente presa a um presente que não se pode nem se deve alterar.

Uma verdadeira democracia é um sistema independente, autónomo, que não 'prende ninguém ou coisa alguma à História', antes e, exactamente ao contrário, abre de forma contínua (e ilumina de forma específica, própria, autónoma) o caminho para novas modalidades livremente não-previstas de História, i.e., modalidaes que não (obrigadas a permanecerem artificialmente) presas a modelos demasiado fixos e precisos desta.

Que é como quem modalidades em que a forma sempre instrumental da História não se acha, em caso algum 'tutelada' ou 'significada' por outra coisa que não o interesse colectivo (realmente colectivo, isto é, representado na História como a expressão organizada e funcionante dos diversos 'individuais' nele contidos) livre e consciente, expresso em órgãos próprios de natureza sempre especificamente cívica e política e apenas funcionalmente económica e financeira.

Poderia dizer-se em síntese que o papel da Democracia futura é repor a História (e a Política nela contida) pela ordem certa e, por conseguinter, na ordem certa, também.


[Imagens: a da mutação de Karl Marx em Groucho provém da Net de um lugar que não me é já possível identificar e referenciar devidamente. A outra, é um "collage" original meu, inserto também em http://umnaoalexandreonirico.blogspot.com/ um blog alternativo, temático, do autor.]

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