quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"A «Idade de Ouro» da vulgaridade?..."

Sean O ' Faolain

Num velho "Playboy" (datado de Janeiro de 1975)---a "Playboy" of all places"!...---deparo-me com um artiguinho do escritor irlandês Sean O' Faolain sobre Sherlock Holmes (melhor: sobre uma certa ideia de Sherlock Holmes e da Inglaterra Vitoriana onde ele se movimentava) ao qual adiro sem dificuldade.

A tese de O' Faolain (na imagem do topo) é simples e resume-se em duas palavras: defende ele que ainda hoje vale a pena re/ler Conan Doyle, desde logo (O' Faolain nada nos diz sobre a cionsideração em que tem os possíveis de/méritos literários presentes/ausentes da obra desse seu famosíssimo confrade vitoriano) pelo ensejo que a leitura dos textos versando as proezas do génio detectivesco de Baker Street nos fornecem de voltar a mergulhar numa espécie de idade do ouro da total (ou da ideal!) inocência inteleccional onde reinavam genericamente a ordem, o equilíbrio, a (ao menos, teórica...) "mesure" relacional e, em termos latos, cultu(r)al; uma era caracterizada, entre outras coisas igualmente sólidas ("dependable") e consistentes, pela circunstância de a "ciência" poder, em última instância, explicar literal (ou, pelo menos, na pior das hipóteses, potencialmente) tudo quanto, como indivíduos e como sociedade, nos rodeia (pôr ordem nas nossas dúvidas, angústias, etc. individuais e colectivas remetendo-as (eu diria: horizontalmente) para o rol tranquilizador das coisas condenadas a, mais cedo ou mais tarde, fazerem sentido por se re/encontrarem finalmente com os seus "alicerces ônticos" ou fundamentos "de episteme").

A Doyle e ao seu muito... "comtiano" ou "spenceriano" ("claude-bernardiano" e por aí fora...) detective, contrapõe O'Faolain a figura de "Pop" Doyle, o truculento polícia de "French Connection" do filme de Friedkin (à época em que o artigo foi escrito, um grande sucesso popular no cinema) epítome de um mundo sem verdadeiro mistério (leia-se: sangrado da empolgante magia da pesquisa---eu diria: ritual e/ou cerimonial) do desconhecido; um mundo nu (ou amputado?...) de sagrado (desvendar um "mistério", se é seguramente a admissão implícita da substancialidade última da própria 'Verdade' assim como da possibilidade teórica de atingi-la ou reencontrá-la numa ordem social, cultu(r)al e política dada, pode, de igual modo, ser cumulativamente, entendido, enquanto forma mais abstracta e ainda mais teórica, como uma metáfora subtil da iniciação sagrada do indivíduo num modelo cosmovisional preciso que não se questiona mas, justamente através das formas várias da Cultura, pelo contrário, continuamente se confirma e se celebra.

Faye Dunnaway no papel de Bonnie Parker em "Bonnie & Clyde" de Arthur Penn (um filme incompreendido por muitos e detestado por alguns, entre os quais José Régio)


Em "French Connection", diz O'Faolain (que, de resto, lhe junta também o soberbo "Bonnie & Clyde" de Penn e "In Cold Blood" de Brooks como outros modelos possíveis de 'objecto cultu(r)al' electivo da pós-sacralidade---a expressão, entenda-se, não é de O'Faolain: é minha); em "French Connection" dizia, reportando-me sempre às estimulantes reflexões de O' Faolain, o mistério perdeu-se já por completo: não há mistério---há criminosos e a tarefa brutal, completamente despida de subtilezas ou romantismo, de apanhá-los ou---pior ainda!---neutralizá-los, eliminá-los.

Pessoalmente, não me restam muitas dúvidas de que um dos traços mais estáveis e mais tópicos da pós-modernidade consiste (im) precisamente na alienação (no "estrangement") por parte dos modos mais característicos de (não) ver e de (não) ordenar a realidade de um sentido estável para as formas de que a 'cultura das representações abstractas' é genericamente feita, se assim me posso exprimir.

O surrealismo e a estética-teledisco que cultu(r)almente lhe sucedeu (ou mesmo essa coisa abominavelmente vulgar e imbecil que é a publicidade) dão um excelente-péssimo retrato do "fenómeno".



O surrealismo representou (a meu ver, pelo menos) no limite uma espécie de "consagração crítica" secundária ou mesmo terciária mas, em qualquer caso, consagração ("sacre") da ordem estabelecida que se proponha, em primeira instância, "questionar".

As suas ousadas e aparentemente "offbeat" formulações não vivem, no fundo, sem a integração nuclear, crítica e secundária embora, da própria ordem que diziam vir pôr em causa.

A "civilização surrealista", a 'época teórica' ou 'epistemológica' que gerou os surrealistas conhecia ainda (ou conhecia já?) os segredos da esclarecida técnica da "esquizofrenia crítica" ou "desdobramento inteleccional dialéctico" de que Brecht e Piscator farão, como se sabe, bandeira teórica no domínio da intervenção teatral.

As telas de Dali ou os poemas de Éluard representam uma espécie de "redescobrimento ou celebração militante" da ordem---que partilham, todavia (e não o ignoram!) com todos em quantos dizem ver os "símbolos" do conformismo e da reacção.


Salvador Dali (retrato de Paul Éluard)

A 'opus' surreal configura, no seu conjunto, diria eu, essencialmente um diálogo---um diálogo vivo, não isento de picardias formais e afectuosos, quase ternos e frequentemente cúmplices, sucessivos antagonismos---mas um diálogo, ainda assim.

O surrealismo possui, a meu ver, uma âncora cultu(r)al e até cosmovisional reconhecivelmente estável---situada, aliás, no mesmo exacto ponto onde os propugnadores assumidos da ordem situam a sua própria "âncora de episteme".

Os surrealistas são, numa palavra, uma élite pensante (senão mesmo uma consciência crítica activa e vigilante) do "establishment" que dizem combater.

Desempenham, em resumo, o mesmíssimo dialéctico papel que, no seu próprio tempo e espaço, desempenharam, em relação à cultura "ocidental" ou a aspectos importantes dela, um Zola ou um Sartre.


A "cultura" dos telediscos o que, por sua vez, se limitam a fazer é retirar à reflexão (e sublinho: reflexão!) surreal o seu fundamento crítico essencial: "vão-se a ela", cultura, e de "cultura em si" (de cultura como consciência consistente de si) convertem-na alegremente, com a pressurosa solenidade dos tolos, num mero adereço ou num simples (num, demasiadas vezes, simplório) ornamento de uma "cultura" que não têm, porém, a mínima ideia qual possa ser.

Num adereço vagamente (gravitacionalmente) cultu(r)al onde o culto das impressões "puras" (i.e. da "pura" impressionalidade como... "cultura" e como horizonte único do trabalho pardacento do "espírito") substituíu (ou substituiram) já as que podem idealmente obter-se, entre as pessoas e sociedades, elas sim, de espírito e de cultura, pela via do esclarecimento e da inteligência paciente, escrupulosa, crítica, dialéctica, da realidade.

Da publicidade nem vale a pena falar: se a estupidez soubesse desenhar ou filmar seria assim que fatalmente se manifestaria---como um daqueles "outdoors" com ditos e frases prodigiosamente ignaros e imbecis que submergem continuamente as nossas cidades num manto de cromática, omnipresente vacuidade onde alguns se obstinam em ver, teimosamente, "trouvailles" do mais excelso "wit" ou como um daqueles "filmes" assombrosamente idiotas que continuamente se atravessam na fruição do Cinema ou do Teatro que ainda vai sendo possível, hoje-por-hoje, ver e nos acometem ouvidos e inteligência com todo o peso da vulgaridade feita imagem e estridente, completamente vazio, som...

(Sempre pensei que é extremamente curioso o modo como os "apóstolos" da "legalidade proprietária" em matéria de Arte e direitos de Autor nunca se esqueçam de se insurgir---e com que usual ferocidade!---contra os "atentados à propriedade intelectual" cometidos pelo público mas se esqueçam imediatamente de tão louváveis escrúpulos sempre que se trate de exibidores televisivos que se dediquem a "espatifar" cobardemente filme atrás de filme mutilando-os com inimaginavelmente impertinentes "intervalos" para "publicidade"...

Passaria, por exemplo, pela cabeça de um desses iluminados idiotas a que comummente chamamos "publicitários" e---imagine-se!--- "criativos" fazer a uma tela de Picasso ou a uma escultura de Miguel Ângelo o que impunemente se permitem fazer regularmente a um Lang ou a um Kubrick, isto é, parti-los cirurgicamente "em quatro" a fim de encaixarem nos "espaços" criados pelo respectivo analfabetismo cultural doses maciças de "lavagens metódicas ao cérebro" a fim de venderem umas quantas caixas de meias de senhora ou meia dúzia de embalagens de fraldas para bébé?...

Publicidade: a vulgaridade ao poder

Singular preocupação com a Arte essa que se permite estraçalhar Fellinis ou Tatis por conta de detergentes ou preservativos, com a tácita cumplicidade da "cultura" institucional...)

Voltando, porém, um pouco atrás, termino expressando ainda uma vez a minha quase incondicional concordância com a visão que O' Faolain tem da cultura enquanto "território celebracional" electivo onde é possível operar com fecunda segurança o "desdobramento inteleccional" figurado, simbólico ou "simbológico", que nos permite reencontrar-nos com alguma da nossa identidade cultu(r)al, perdida nos meandros de uma sociedade (ou de um pós-socialidade) onde o exercício cuidado da inteligência como expressão autónoma nobre de humani(ci)dade que é suposto sermos (ou mediarmos) se perdeu já por completo.

Sempre disse que quem quiser hoje ser revolucionário deve começar por ser inteligente e por postar-se de forma decidida, contra a "cultura" da valorização, não da inteligência da realidade, das inúmeras formas que ela pode circunstancial ou circunstanciadamente assumir, mas dos meros usos , ainda por cima, trágica, miopicamente venais, dessa mesma inteligência.

É bom, é saudável, irmos ao cinema (mesmo com... "criativos" que se dedicam a estraçalhar metodicamente filmes que não compreendem e não respeitam a fim de os "decorarem" com o discutível produto das respectivas "destilações intelectuais"); é bom, dizia, mesmo que seja na companhia de um realizador comparativamente menor como Alfred. L. Werker celebrar os sólidos rituais de consagração da "ordem cosmovisional e política" em geral através das sempre emocionantes manifestações de "equlibrismo intelectivo" de Sherlock Holmes, como diz O'Faolain referindo-se especificamente aos romances e contos de Conan Doyle.

É bom ir ao Cinema celebrar (eu diria: simbolicamente) , nesse espaço celebracional comum, com um grande realizador como Howard Hawks, a heroicidade desesperada e, ao mesmo tempo, ideal do "sheriff John Wayne/John T. Chance" do condado de Presídio, do "grande estado do Texas" (onde ainda há pena de morte...).

Howard Hawks

É bom ir ao Cinema re/visitar um Paris que nunca terá completamente existido e já se perdeu por completo (o Paris, no fundo, apenas imaginado e imaginário dos Prévert, dos Carco, das Duras, das Varda, dos Sartre e das Beauvoir) com esse prodigioso 'palhaço da melancolia e da esclarecida desordem' que foi Tati.

Quando a vida dita real enveredou já decididamente "por maus caminhos" (inteleccionais, civilizacionais, críticos, políticos, etc.) resta-nos o Cinema (ou o Teatro, a Literatura) para nos reencontrarmos simbolicamente com aquilo que nos é possível ir conservando de uma identidade ideal, individual e colectiva que é vital que saibamos guardar para (quem sabe?) voltarmos a tirar do armazém da memória um dia em que voltemos a saber como utilizá-la de forma nobre e (porque) verdadeiramente humanista e inteligente...


Basil Rathbone no papel de Sherlock Holmes

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