domingo, 15 de março de 2009

"Twin Peaks" de David Lynch [por rever]


Se eu pretendesse "situar" (não diria: temática mas, de um modo diferente e mais amplo, mais genérico, com certeza) "temicamente", no contexto de um certo universo cultu(r)al "ocidental" global contemporâneo possível, o Cinema de Lynch--e, dentro dele, especificamente este "Twin Peaks"--teria, acredito eu, de começar por citar três outros grandes (três outros enormes!) nomes da Cultura e especificamente da Arte dos nossos dias: Kafka, Antonioni e Beckett.

Primeiro, Beckett.
Beckett porque é, em muitos aspectos, o meu preferido e porque é, de facto, difícil conceber uma "coisa" mais conceptual (ou conceptivamente) beckettiana do que a "mensagem" (a "bottomline", como diria, a propósito, um observador anglófono) final de "Twin Peaks"--filme onde eu, pessoalmente, vejo, com efeito, um exemplo absolutamente paradigmático--visual e conceptualmente arrebatador!--da "naughtopy" (ou "atopia") beckettiana típica, muito clara em, por exemplo, "All That Fall", uma peça radiofónica do criador de Godot onde, precisamente, o motivo do "a-ser" ou "a-ser-se", isto é, da anessência ou condição anessente ideal da condição humana (se é possível falar fácil ou aproblematicamente de "humanidade" e "condição genuinamente humana" em Beckett mas enfim...) está no próprio cerne ou no núcleo celular narracional genético da respectiva "arquitectura" (ou da respectiva "geometria"?...) "témica" básica.

Em "Twin Peaks" como no citado "All That Fall" (um texto beckettiano a que estou, aliás, pessoalmente muito ligado por razões particulares, desde logo porque me vi evolvido na experiência única de traduzi-lo pela primeira vez em português para "A Comuna", para a encenação de João Mota) a sugestão da defesa «crítica» e especificamente «dramática» de uma espécie de "estatuto" de perfeição ontológica final (ou, ao invés, original?...) obtível (por absurdo) apenas--lá está!--antes e depois da existência material dos indivíduos (constituindo esta, aliás, muito mais uma mera hipótese ou sucessão/teoria descontínua e intrinsecamente des-estrutural dessas mesmas hipóteses do que propriamente uma realidade em si, consistente e, nesse sentido, também «orgânica», segura e «pacífica»--motivo pelo qual eu punha, atrás, uma série de reservas cautelares necessárias quando falava do problema da abordagem crítica da temática do im/possível "humanismo" em Beckett).
Não de Beckett mas seguramente em Beckett, sublinhe-se...

As sequências finais do filme de Lynch, com efeito, conduzem, a meu ver (parecem conduzir?) a essa ideia ou a essa mensagem "árida" e, no fundo, sempre "desesperadamente feliz" da existência de uma espécie de "projecto teórico" de glorificação final (ou finalmente aliviada) e--lá está!) distintivamente nulotópica do Nada (da ideia/apologia de uma "dissolução feliz" ou "correcção/néantificação" apoteótica final do lapso de "ser" que aparece, por exemplo--a meu ver, pelo menos: é assim que pessoalmente "leituro" o motivo--na 'angelização' triunfal de Laura ou da morte de Laura) como "proposta" final de "atopia", encerrando--culminando--a difusa geometria (a labiríntica "geométrica") de (talvez) sucessivos, contínuos, instantes vagamente "pessoalizados" ou "personificados" (isto é: "verticializados em possíveis pessoas") a que chamamos vulgar e, às vezes indistintamente, "vida" e "viver").

Em segundo lugar, Antonioni.
Falei também de Antonioni, com efeito.

Do Antonioni de "Blow-Up", seguramente: basta recordar aquela sequência final, verdadeiramente fabulosa mas também aterradora, arrepiante, do jogo de ténis sem bola, soberba metáfora do absurdo real da existência, representada aqui por um jogo, um código "puro", isto é, uma gramática integralmente inventada pelo respectivo sujeito (ou objecto? "Objeito" poderá ser um bom termo para referir esta entidade refém de um idioma que cria autonomamente--ou que segrega, excreta, autonomamente?--de modo contínuo, a sua própria ilusão/ficção de um conteúdo e de um sentido finais para si?); um código, dizia, de onde, pois, o verdadeiro sentido (figurado no filme especificamente pelo vazio deixado continuamente pela bola ausente) está, ele mesmo, na realidade im-presente, constituindo, neste quadro, a existência (no filme de Antonioni como no de Lynch) apenas uma sucessão de gestos realmente vazios de sentido e fundamento--uma "dança dos espectros" completamente desprovida de essência ou (essencialidade intrínseca) reconhecível e a que apenas a «inércia crítica» pura dos "sujeitos" (ou dos "objeitos") permite conferir a aparência imediata e (im?) puramente exterior de um sentido, na realidade, todavia, como dissemos, demonstravelmente inexistente.

De algum modo, tudo se passa em Lynch (muito se passa, em todo o caso nele e para ele) como um lucidíssimo Vergílio Ferreira diz que as mesmas "coisas" se passam em Kafka--e, por isso, o nome do autor d' "O Processo" e d' "A Metamorfose" me acorreu, como atrás digo, de imediato ao espírito enquanto re/via "Twin Peaks".
Observa Vergílio Ferreira num ensaio incidindo sobre aspectos específicos da ficção de Kafka, com efeito, que a essência da técnica narrativa deste consiste em contar realisticamente uma "estória" a que falta, contudo, uma chave que permita afirmar que toda a estrutura (e toda a extensão!) da "anedota" é correspondentemente (é realmente!) "realista".

Este des-encontro, esta programada (intencionalíssima, pois) des-continuicidade estrutural, premeditadamente estabelecida entre a técnica e o conteúdo é, diz Vergílio Ferreira, em última instância, aquilo que realmente perturba (e inquieta!) em Kafka--daí resultando o paradoxo que consiste em ter sido possível originar um «objecto narrativo» profundamente inquietante caracterizado (que é profundamente inquietante porque caracterizado!) pelo facto singularíssimo de quanto mais "realista" conseguir ele ir sendo, menos realista, afinal, se ir proporcional ou proporcionadamente tornando.

Lynch, em concreto, aplica, a meu ver, esta mesma "fórmula" desestrutural (e desestruturada, desestruturantemente!) inversional ao universo "de plástico" ou "de cartão" do "pulp" e (como faz, por exemplo, Carpenter com a subcultura "pop" nas suas diversas formas, designadamente televisivas) dos mídia, especificamente das "soap operas" norte-americanas (recorde-se, por exemplo, no filme a figura enigmática, misteriosíssima, do "homem sem braço"--um eco da série "The Fugitive", um "clássico" da "trivia" norte-americana e mundial?...).

Soltada por completo de um reconhecível (ou de um minimamente demonstrável) "suporte significador ínsito", a angústia surge, no filme (como acontece, voltando inevitavelmente a ele, em Beckett) como um «objecto em si», isto é, como algo de amputado, mutilado e obsessional que não pertence rigorosamente a circunstância reconhecivelmente necessária e lógica alguma, antes gravitando (ou ressurgindo, reemergindo) ciclicamente na (sub?) consciência dos indivíduos, na forma de espectro angustiado de um sentido que se perdeu definitivamente, dele ficando apenas o grito (estaremos aqui a falar, por exemplo, também de um Munch ou de um Van Gogh?) "em estado puro".

Em Lynch (como, volto a dizer, em Beckett) a angústia (como a própria fala) não é o despertar--e o início!--de coisa alguma senão que são, uma e outra, precisa ou imprecisamente o contrário: o fim de tudo.

(Embora Maria do Céu Guerra--quem conversei uma vez sobre o assunto e que interpretou, como se sabe, o papel de "Mrs. Rooney" em "All That Fall" não concorde) continuo, hoje como nessa altura, firmemente persuadido de que a linguagem (e, já agora, também a própria angústia e o próprio desespero como tal) desempenham em Beckett, como agora em Lynch, um papel muito semelhante ao dos excrementos, isto é, linguagem, angústia e desespero situam-se, como atrás disse, num e noutro autores, no fim não no princípio (e muito menos no princípio activo) do próprio mecanismo de expressão e comunicação humanas.

Ou seja: a linguagem não visa, neste(s) caso(s), realmente comunicar: na verdade, ela é (limita-se a ser!) o que Ginzberg chamava (ou definia) como um "howl", um "uivo", uma reacção instintual pura e literalmente indecomponível, des/estruturalmente assintáctica, subsumível em (quase?) tudo, pois, às secreções e excreções animais (acontecendo que é precisamente isto que, assim observado e assim equacionado, permite, em meu entender, fundamentar a minha própria ideia--a que, muito imodestamente chamo, às vezes, tese...--da existência e da prevalência característica de uma comédia ontológica beckettiana, em "resposta" à tese envolvendo o princípio crítico de uma "dark comedy" defendida por Julie Campbel num outro debate organizado pel' "A Comuna" a propósito de Beckett, onde tive ocasião de estar igualmente presente).

Também o desespero (de que há no filme de Lynch, aliás, exemplos diversos) partilha, a meu ver, dessa condição ou desse estatuto objectual "puro" e limite: na verdade, ele surge-nos sempre como algo que "sai espontânea ou autonomamente do corpo" (da matéria do próprio corpo!) sem vir necessariamente 'preso a' uma vontade e, sobretudo, a um fundamento reconhecível, sendo na realidade, pois, algo que (como os monstros de Gigger ou de Bacon) habita e parasita o corpo, invadindo-o e dilacerando-o, segundo uma i/lógica específica onde a "razão" humana não penetra para "entender" e, menos ainda, para organizar.
Que invade, dilacera e viola o corpo.
Antes de terminar, acrescentaria ainda: se me fosse dada a possibilidade de organizar um ciclo de homenagem beckettiana envolvendo o conjunto das Artes conhecidas, além de poemas de Herberto Helder (o mais beckettiano dos poetas portugueses), exporia reproduções de telas de Bacon, Paula Rego e Gigger e passaria filmes como "Memento" de , "Spider" de Cronenberg, "The Naked Lunch" ogualmente de de Cronenberg, "Blow-Up" de Antonioni mas, em caso algum deixaria de incluir de Lynch, além de "Eraserhead", este singularíssimo e literalmente fascinante"Twin Peaks".

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