sexta-feira, 20 de março de 2009

"Sobre «questões de encenação»"


Um dos conceitos que, sobre os quais, há muito, venho, em larga medida, de um modo geral, centrando o tipo de abordagem que faço dos livros e dos filmes que vou vendo, é o de "leituração".
Esta ideia de "leiturar" um certo tipo de «objecto do conhecimento» tem muito que ver com o modo (o modo, chamemos-lhe... "significado") como, por exemplo, um Freud "leu" o "Hamlet" de Shakespeare.

Na verdade, Freud (como lembra, por exemplo, Harold Bloom) não leu exactamente o texto shakespereano: eu diria que, antes de tudo o mais o "leiturou".

Isto é: "significou-o" de uma forma muito pessoal e até consideravelmente invasiva, violenta, violando-o, é verdade--mas, dessa (seguramente involuntária) violação do texto original saíu, afinal, algo que, do ponto de vista do conhecimento efectivo que temos hoje, não só de Freud e da psicanálise como, apesar de tudo, do próprio Shakespeare possui um interesse e uma utilidade que não são, com certeza, num certo sentido menores.

É que ao violar o texto, Freud desafiou-o, deu um contributo sem dúvida relevante para testar-lhe (e sondar-lhe materialmente) de algum modo, os limites--ou os limites do próprio significado como texto teatral.

Freud e o modo como "leiturou" muito mais do que "leu" o "Hamlet" deu um contributo importante para re/perspectivá-lo aos olhos de todos nós conmo «objecto dramático» e, de um modo mais amplo, cultu(r)al, mental e, claro, estético.

É neste sentido da "leituração" como dialectização (como "endo-dialectização", com certeza mas também como dialectização num sentido mais amplo que envolve a Cultura e o olhar cultu(r)al no seu todo e numa acepção sin- mas também dia-crónica que eu vejo e equaciono a questão concreta da encenação de uma peça teatral.

De uma encenação formal, digamos assim, i.e. de uma que resulte num objecto específico colocado materialmente num palco e de uma encenação virtual, ou seja, de quantas inevitavelmente faz cada um de nós quando lê (quando começa por ler...) um texto para teatro.

Pessoalmente (e já aqui expressamente o disse) tenho feito diversas destas últimas.

Uma delas foi a do "Frei Luís de Sousa" de Garrett de que falo noutro ponto deste "Diário" e que deu origem a uma experiência pedagógico-didáctica concreta de que falo num artigo que "O Professor" quis ter a gentileza de publicar num dos seus números ainda relativamente recentes.

Recordei-o (e a quanto nesse texto, em matéria de "leituração" dos clássicos diz respeito, ao ler recentemente uma entrevista com o baixo-barínono José van Dam onde este lamentava o desmesurado peso dado à encenação na ópera em detrimento, segundo ele, da componente especificamente musical.

Sucede que não é só van Dam que se quiexa disso: num excelente artigo de John Blachty (publicado na revista espanhola "Primer Acto", nº 25 de Julho/Agosto de 1961, intitulado "como no debe montarse a Shakespeare", assim mesmo, com minúsculas), vem o autor a público insurgir-se contra o que poderia chamar-se a "cinematização" excessiva do teatro, no cumprimento de uma espécie de (des?) processo modernamente comum muito frequente que, segundo o crítico, atraiçoaria, diminuindo-a e secundarizando-a por completo, importância essencial da palavra como veículo electivo de expressão dramática.

Exemplificando, recorda Blachty o modo como, por exemplo, em diversas, sucessivas, encenações de Shakespeare os "metteurs-en-scène" nos foram mostrando "Measure for Measure" "com trajes de Fragonnard; "Péricles" [com] o velho Gower, personagem muito inglesa, [transformado] num formoso negro que canta calipsos" "Macbeth" [com] "um coro de bruxas" [substituindo as três bruxas de Shakespeare] "cantando e dançando"; um "Hamlet" no qual Bucha e Estica são os coveiros e um "Henrique IV" "que termina com a primeira tirada de "Ricardo III"".

Blachty escreve o seu artigo justamene para denunciar e se insurgir veementemente contra o que considera as fantasias dos encenadores.

"O método do poeta que apenas utiliza a sonoridade das palavras parece-me a mim", diz ele "infinitamente preferível".

"Inclusive noutros idiomas--nos quais essas mesmas sonoridades não podem ser naturalmente recriadas de modo fiel em relação ao original, prefiro o texto em si--o texto que, graças às poderosas imagens que o preenchem, expõe e desnuda por completo a alma do rei e cria uma tempestade mais real do que todas essas gravações postas em cena por esses jovens aventureiros onde se ouvem literalmente o trovão e o assobio do vento ou o crepitar da chuva".

E prossegue o crítico: "A bela arquitectura da cena isabelina, nua e limpa, é a única que convém às obras de Shakespeare porque permite o desenvolvimento perfeito da obra que não pode, portanto, ser melhorada nem por iluminações realistas, nem por quaisquer brilhantes ideias saidas da criatividade dos decoradores. Quando Shakespeare quer utilizar a música, di-lo expressamente. Quando se trata de incluir a dança, pede-a não menos expressamente."

E conclui: "O trabalho dos actores assim como a própria linguagem criam o seu próprio mundo maravilhoso, sem necessidad de um corpo de baile nem da música atroz de Mendelsson".

Ora, com o devido respeito pela visão, ascética e estruturalmente intelectualizada, de Blachty a fidelidade material é apenas um dos modos possíveis de ser fiel

Uma cultura deve re/construir-se continuamente--e corre, a meu ver, seriíssimos riscos de estiolar caso, em vez de se re/construir, se limitar a repetir-se. Ecoar-se continuamente, com certeza. Mas ecoar-se não significa repetir-se. O meu próprio gosto pessoal pela "collage" vem justamente, penso eu, sobretudo da possibilidasde de agregar aos objectos da nossa admiração (e até da nossa veneração) o nosso próprio ponto de vista pessoal sobre eles.

Falo, assim, claro, da possibilidade concreta de deixar nestes a nossa própria marca crítica e, de uma maneira geral, interpretativa--a marca do nosso próprio Tempo--criando, desse modo, um lugar para nós e para os novos tempos na cultura que gerou os «objectos» originais, permitindo, desse modo, entre outras coisas, alargar ulteriormente esta última, levando-a mesmo, através desse acto posterior de abordagem a vários títulos "comprometida", a superar sempre as limitações materiais do espaço e do tempo como tais.

O que eu digo é que as culturas crescem como as pessoas através da aceitação, é verdade (através da reprodução ulterior dos modelos triunfantes no contexto de uma certa culturalicidade específica, é certo) mas, de igual modo--e num certo sentido, sobretudo--através da rejeição funcional ou funcionante expressa dos mesmos.

Os rapazes crescem "par rapport" aos pais mas também "par rapport" às Mães, aos sexo (e à sexualidade) "opostos", numa dinâmica dual ("em linha quebrada") onde a negação desempenha, a meu ver, em tese, um papel tão relevante--de facto, tão essencial!--quanto a própria afirmação.

Eu vou mesmo mais longe e digo: a realidade conserva-se a prazo una e contínua (ou continuacionalmente) orgânica como, por exemplo, o átomo (a "gramática estrutural ou estruturacional atómica") conserva a sua própria estrutura característica, isto é, é o movimento que induz e substancia, em última instância, a própria estabilidade, chamemos-lhe, aparente ou final.

Eu sou dos que crêem, por outro lado, que a mecânica da replicação edípica amplamente teorizada por Freud não constitui, na realidade, nm um mero acidente, nem um simples episódio fragmentar e descontínuo no contexto dos mecanismos específicos de replicação objectiva natural.

Sou dos que acreditam, pelo contrário, que a arquitectura e a mecânica quer do Édipo, quer da Electra freudianos constituem o modo--a gramática, a sintaxe--muito precisos todos eles, como a realidade planeou expressamente replicar-se ou reproduzir-se continuamente, sendo que directamente associado (ou melhor: sendo que residuantemente subjacente) a cada um dos mecanismos específicos que regem a reprodução dos indivíduos e, por hipótese, dos animais e até objectos existe ("por trás de" toda a "realidade como objecto" ou como "discurso", pois) uma espécie de "arquétipo abstraccional puro" onde essa "ciência" e esse "saber reproducionais" se acham, diria eu, "armazenados" e prontos a replicarem eles mesmos sobre qualquer projecto potencial de reprodução de entidades no (con) texto da realidade, designadamente futura.

O que chamo os projectos de "educada transgressão" e até mesmo "profanação" na Arte (no Teatro, na Poesia, na Pintura ou na Música) reflecte, a meu ver, pontualmente essa 'disposição' ou essa 'indicação' abstraccional específica da realidade, mantida em suspenso no limbo intra- e meta-objectual, digamos assim, a fim de deixar quando necessário, a sua marca particular sobre os objectos da realidade.

Um texto de Shakespeare ou de Garrett ou de qualquer outro 'clássico' existe na forma que lhe conferiram os seus criadores originais, é evidente.

Esse é um modo de ser que ninguém contesta--ou lhes contesta.

Mas esse modo objectual, digamos assim, não permite em si mesmo re/produzir ulteriormente cultura, numa acepção ou num sentido dinâmicos, criacionais e activos.

Esse modo "objectual", limita-se, diria eu, a "puxar" continuamente a cultura "para trás"--e (pior ainda) para trás de si própria.

Admirar uma tela de Rembrandt ou uma tragédia de Eurípedes não é Arte--e tenho dúvidas que seja, num certo sentido dialéctico e afirmativo, cultura.

Ter um ponto-de-vista sobre uma e outra, porém, podem já começar efectivamente a sê-lo, numa acepção potencial mas seguramente promissora, digamos assim.

Alcançado esse ponto-de-vista, estão criadas as condições--aberta a porta--para que a cultura, então sim, possa entrar, reduzindo dinamicamente, dialecticamente, o espaço e o tempo entre um instante e outro do ser, individual e colectivo.

Não é que as modalidades ortodoxas de encenação de um drama ou de uma ópera clássicas não devam, neste quadro, ser em si mesmas valoradas e que estejam, por conseguinte, a ser aqui, de um modo ou de outro, menorizadas e depreciadas.

Pelo contrário: é importante (é vital!) que as diversas formas da cultura não se convertam (não se dissolvam) por inteiro nos pontos-de-vista que vamos tendo sobre elas.

Aquilo que é essencial é, aliás, precisamente o contrário.

É o modo como profanamos os objectos que define e reforça a sua mas, de igual modo, a nossa própria identidade.

Profaná-los é, no sentido assumidamente dialectizante em que um Ionesco e, sobretudo, um Adamov ou um Beckett "profanam" o teatro "burguês" (e) clássico, um modo crítico nobre de reconhecer a sua existência ("to acknowledege them") e a sua importância em muitos casos, verdadeiramente fulcral para a cultura comum--e, por conseguinte, de respeitá-los.

Talvez uma sociedade apenas composta de "gente culta" pudesse alimentar-se cultu(r)al e identitariamente só da encenação ortodoxa do teatro ou da ópera.

Admito que o modo estruturalmente intelectualizado ("simbólico" puro ou quase puro) que Blachty propõe, em que, por exemplo, os sons são substituidos por representações puramente mentais de si pudesse constituir por si substância bastante de cultura numa sociedade dessas--onde (e se!) as houvesse...

Em sociedades em que, porém, a capacidade de abstractização imediata necessita ainda, em larga medida, de estímulos concretos e exige a presença de ferramentas mais concretas do que o pensamento como tal é, creio eu, a profanação concebida como a tenho até aqui vindo a conceber e a descrever que pode induzir a prazo (educando justamente as audiências para a fidelidade conseguida dialecticamente através do dissídio e da "educada deformação" objectual) a própria 'vocação' final "natural" para pensar...


[Nas imagens: topo, o teatro romano de Verona; fundo: o Teatro Del' Acqua, de Charles Paton]

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