Para mim, um dos exemplos máximos da benéfica irracionalidade do "desporto", tal como concebo: sendo eu um benfiquista "dos sete costados", um dos meus grandes ídolos de sempre foi o "Carlos Gomes do Sporting"...
Não bastou para levar-me a negar o meu acendrado benfiquismo. De facto, sempre me senti um pouco (ou, pelo contrário, um muito...) confuso, perplexo mesmo--e até razoavelmente incomodado...--por esta óbvia "traição" ao meu clubismo.
O modo como concebo o papel integrador e socializador do irracional no Desporto fez, todavia, com que o meu fascínio por este louco excessivo e genial que foi o grande Carlos Gomes convivesse, de forma, apesar de tudo, perfeitamente pacífica, com essa paixão "assulapada" pelo vermelho que me acompanha desde a mais tenra idade...
Já o disse, por mais de uma vez, noutras ocasiões e noutros lugares: a competição impropriamente dita "desportiva" (estamos, na realidade, a falar, pelo menos em teoria, de uma indústria--de um ramo de uma indústria: a do espectáculo originalmente desportivo) deve desempenhar um papel importante na codificação (ou, se assim se preferir dizer: na "resolução codificada" de muitos conflitos e tensões, tanto individuais como, num certo sentido: sobretudo, colectivos.
Vou mesmo mais longe e afirmo: grande parte dos mecanismos modernos de socialização deveria obrigatoriamente incluir a prática dita "desportiva" fomentada e organizada a partir da Escola--que é como quem diz: formalmente incluída, essa prática, entre as restantes matérias curriculares tal como aconteceu durante muito tempo nas "public schools" inglesas.
No "desporto" (como idealmente no Desporto com maiúscula, nas diversas modalidades que, em geral, compõem um e outro) vejo eu toda uma gramática por meio da qual é possível (de facto: é desejável!) sublimar e portanto integrar ou socializar as performações originárias de um vasto domínio sub e mesmo in-consciente e, sobretudo, irracional as quais, quando investidas "em estado bruto" ou "em estado sólido") no social podem provocar na organização derste indesejáveis e perversas deformações de composição e estrutura cujas consequências podem, no limitar, revelar-se literalmente fatais do ponto de vista da sobrevivência daquele na exacta forma em que foi por elas "encontrado", digamos assim.
De facto, um dos grandes problemas das sociedades ditas "democráticas" (sobretudo, pós) modernas reside na gestão de um conjunto de componentes puramente irracionais às quais é preciso arranjar um lugar "higiénico", um lugar de segurança, no conjunto das práticas cultu(r)ais respectivas.
Não se confunda, porém, o papel desejável desempenhado pelo Desporto neste quadro com alienação.
O que eu digo é o seguinte: por exemplo, na minha vida profissional, como professor, encontrei "ene" alunos e alunas com os quais, pelos mais diversos motivos, não me foi objectivamente possível estabelecer laços mínimos de empatia pessoal.
Tal situação, infelizmente, está longe de ser rara nos tempos que correm em que os alunos dispõem da possibilidade de afirmar a respectiva personalidade de um modo que era, todavia, há vinte/trinta anos completamente impossível.
Alunos pouco simpáticos, portadores de personalidades, sob diversos aspectos, menos atractivas num plano estritamente pessoal (mais conflituosas, por exemplo) houve-os obviamente desde sempre: Acontecia, porém, que o conceito vigente de Escola e de Educação incluía, como não se ignorará (como não ignora quem, nessa altura, frequentou um estabelecimento de ensino, sobretudo oficial: um liceu, por exemplo) um modelo de relação «professor/aluno» (ou mesmo «aluno/ Escola» e até de «professor/Escola») em cujo contexto o grau de revelação da personalidade individual dos sujeitos era comparativamente muito formal e, por conseguinte, substancial (e substantivamente!) reduzido.
Quando, todavia, os modelos cultu(r)ais e especificamente políticos de "Educação" passaram a investir substantivamente na «pessoalidade» da relação típica entre todos os sujeitos no interior do processo educativo, a questão da empatia pessoal (ou, ao invés, da falta dela) passou a desempenhar de modo claro e objectivo um papel absolutamente nuclear em todo o processo e a constituir, especificamente, um factor efectivo e decisivo de sucesso em matéria educacional. ducativo.
Muitas vezes, não se pensará nisto como uma decorrência inevitável do próprio modelo cultu(r)al mas a verdade é que, acompanhando a consolidação do novo paradigma de educatividade deu-se, desde logo, uma natural potenciação das tensões ou tensionalidades estritamente pessoais, até aí, de certo modo suspensas e, portanto, pouco intervenientes em todo o processo, como tal. O "gostar de" um professor por parte de um aluno (*) e de um aluno por parte de um (ou vários) professores tornou-se, pois, não só uma componente central de todo o processo como, secundária mas não irrelevantemente, uma fonte de tensões ou tensionalidades cujas repercussões concretas, directas mas, de igual modo, indirectas, sobre esse mesmo processo podem atingir graus ou valores literalmente in-calculáveis.
Ter de "passar" um aluno que nos é, por uma razão ou outra, menos simpático sendo que se tem, ao mesmo tempo de "reprovar" outro com o qual, pelas razões contrárias, simpatizamos pode constituir para um professor causa objectiva de frustração--ficando por determinar o peso que a afeccionalidade, consciente ou inconscientemente investida no processo chega efectivamente a atingir.
Pessoalmente, recordo-me de alunos cuja aprovação senti ter forçosamente de propor exactamente porque, com toda a honestidade e escrúpulo, me foi impossível determinar perante mim próprio e a minha conciência (pesssoal, ética mas também estritamente profissional) o que faria nos respectivos "casos", se a minha relação ou se os meus "sentimentos" pessoais pelo aluno ou aluna em questão fossem, na realidade, outros.
Os opostos desses, especificamente.
Terá, aliás, sido esse escrúpulo e essa preocupação individual com a justiça possível dos actos que, como professor, pratiquei que fizeram com que, ao longo da minha carreira de mais de trinta anos, tivesse tido apenas três recursos às minhas classificações e em nenhum desses casos, tivesse a minha proposta de classificação sido objecto de alteração.
E este é, sublinho, apenas, um exemplo, do modo como as componentes afectivas ou afeccionais actuam (ou podem actuar) no contexto do processo judicativo agregado às práticas educativas específicas.
Imaginemos o que se passa com os médicos ou os advogados--casos em que são as vidas e a liberdade concreta das pessoas que estão em causa!
Ora o que eu defendo é que, em todos estes casos, a prática do Desporto (aprendida e apreendida como um modo de completar harmonicamente uma ideia estável e característica de relação, não menos estável e característica, com o próprio real) pode dar um contributo profundamente relevante para o restabelecimento ideal de uma certa homeostase da própria consciência do sujeito, capaz, por seu turno, de contribuir para o saneamento substancial das atitudes de natureza estritamente técnica a tomar por este.
No Desporto como no "desportismo" é possível "gostar do" clube ou do indivíduo A sem se ter necessariamente de possuir um motivo explicável para ese gostar.
Mais: é possível não gostar do indivíduo ou da instituição B de um modo assumidamente menos racional (ou mesmo abertamente não-racional e não racionalizável) sem que qualquer um desses posicionamentos implique directa ou indirectamente qualquer tipo de impressão de incómodo ou especificamente culpa, desde obviamente que se tenha aprendido e a sublimar as impressões investidas no processo, projectando-as tão pontual quanto 'educadamente' num código de comportamentos ou «comportamentividades» muito precisas que correspondem rigorosamente ao cumprimento consciente das "leis" dessa mesma actrividade desportiva.
É aí, nessa área de pura afeccionalidade que procuramos (e idealmente devemos achar) parte significativa da solução para as nossas pulsões individuais e colectivas, naturais e adquiridas, que não devem, em caso algum, ser como tal investidas nas nossas actividades profissionais e, de outro modo, sociais.
No meu caso pessoal, sou "do" Benfica porque, como recordo noutro lugar deste "Diário" era o simbolica ou simbologicamente (simbo-logicamente...) o clube "do povo"; porque se opunha ao clube dos que, sendo "do povo" pretendiam alienadamente não sê-lo aproximando (ou imaginando aproximar-se) também simbólica ou simbologicamente dos "outros"; sou "do" Benfica porque me diz bastante a ideia de procurar o sucesso, partindo de uma situação original marcada pela privação objectiva desse mesmo sucesso, através de toda uma prática devotada e consistente, sem esquecer respeitosa de valores básicos de ética e de civismo expressos, por exemplo, em atitudes como as de Cosme Damião, fundador e capitão de uma das primeiras equipas do Clube, expulsando o seu próprio jogador Artur José Pereira (o melhor jogador da Equipa, a primeira grande vedeta do futebol português!) na Corunha, porque foi incorrecto para um adversário; a de uma direcção do Clube que protestou um jogo que havia... ganho porque achou que havia logrado esse triunfo de modo objectivamente ilegal, com um golo obtido irregularmente mas validado pelo árbitro ou ainda de Guilherme Espírito Santo, "o Espírito Santo do Benfica", recuando-se a festejar um golo seu ao Sporting obtido na baliza de um Azevedo que actuava de clavícula fracturada e que caindo sobre o braço são ao tenar evitar o golo, ficou prostrado no chão, incapaz de voltar a levantar-se sem o auxílio do nobre adversário.
Sou "do" Benfica também por isso, é verdade, mas sinceramente estou convicto de que já o era antes disso por razões que, também com toda a franqueza, não sou capaz de identificar ou reconstituir sendo que, a meu ver, a "benfiquicidade" que vim encontrar em larga medida por influência de Luís Piçarra, o meu "primo Luís", apenas deu um corpo material reconhecível, materializável, palpável, à minha própria maneira pessoal de entender a realidade, vigente, como disse muito antes do meu encontro com o Clube.
É nos jogos das várias equipas do Benfica que eu invisto conscientemente os meus entusiasmos mais educadamente não-racionais, poupando (como dizer?) toda a racionalidade 'de que sou capaz' para aquelas tarefas e para aqueles domínios da vida em que agir de forma irracional ou mesmo só menos racional envolveria um desrespeito que, de todo, não quero ter pelos direitos das pessoas e da comunidade de uma maneira geral e sã.
NOTA
(*) Uma certa "pedagogia" mais... "pós-moderna", quer na sua versão "profissional" (representada por ministérios e respectivos ministros e alguns--durante décadas: demasiados!--professores) usa, de resto, confundir este "gostar" específico e particular com "motivação".
De facto, o papel (particularmente disfuncional) do "motivacionismo" neo-rousseauino foi (tem sido!) exactamente esse de fornecer a um certo impressionismo pseudo-pedagógico muito falsamente moderno uma espécie de cobertura exteriormente técnica que, durante muito tempo iludiu consistentemente toda a comunidade educativa, chegando mesmo, nas mãos da actual ministra que terá imaginado desse modo conquistar o favor e as simpatias dos pais para a política genericamente obscurantista, provincianamente "modernaça" mas profundamente anti-social, disfuncional e sordidamente economicista do governo a que continua, por uma razão qualquer, ainda hoje a pertencer.
1 comentário:
Olá já coloquei o seu blog na minha lista de blogs interessantes. Demonstra que uma pessoa culta também pode ser um apaixonado pelo futebol. Já agora deixo um desafio: penso que podia pôr um texto a falar sobre o preconceito que uma certa elite cutural tem com o desporto e o futebol em particular.
Abraço
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