Tratou-se, como disse, de um número particularmente bem sucedido, em termos de ensejos concretos para a reflexão. Eu já o disse por diversas vezes, não me considero exactamente um leitor do "Público": leio-o regularmente o que não é precisamente a mesma coisa...
Lendo-o, reconheço que (tendo sempre o cuidado de não esquecer nunca "quem é"...) que está a anos-luz de um híbrido "D.N." (um verdadeiro "case study" de intuição--ou vocação nata--para o servilismo...) para já não falar no abominável-de-truculento "C.M.", o "porta-voz do banco-de-jardim de bairro na andropausa" e por aí adiante.
Voltando, porém, ao "Público" de 03 de Março começo por um artigo de São José Almeida, inserto na página 3 onde a jornalista discorre sobre a questão da possível... "cavaquização" intensiva ou exaustiva do P.S.
Trata-se de um tema, sem dúvida, interessante.
A mim, não me restam muitas dúvidas de que sendo o País aquilo que politica e civicamente (não!) é; sendo o actual poder político exercido numa dessas democraticamente abomináveis maiorias "absolutas"; estando a clássica separação democrática de poder institucionalmente desenhada como está, com o governo a escolher o Procurador-Geral da República e as promoções dentro do Ministério Público a resultarem de propostas de uma escolha directa do poder político; assim sendo, dizia, não me resta a mais pequena dúvida de que era pura e simplesmente inevitável que toda a estrutura do Estado estivesse (como está!) "estrategicamente" governamentalizada ou, como diz São José Lapa, "cavaquizada".
Necessariamente, pois.
É, aliás, por isso mesmo--porque essa "fatalidade" é, no quadro institucional e cívico actual, virtualmente inevitável--que eu pessoalmente preconizo a extinção da possibilidade de se formarem mais maiorias destas ditas (e bem!) "absolutas" mas que advogo, sobetudo, a ideia de que qualquer projecto de esquerda, hoje, tem inevitavelmente de passar pelo investimento estratégico nas múltiplas formas possíveis de pedagogia cíviva e político como pressuposto esencial de democraticidade a que houve recurso no tempo do fascismo.
Como?
Através da potenciação das capacidades de mobilização popular e especificamente cívica das colectividades populares e, dentro delas, do Teatro, das coneferências, das actividades de leitura colectiva discutida, dos Cine-clubes, etc. etc.
Ou seja: o "povo" não mudou no essencial desde que o fascismo caíu entre nós.
A sua "vocação atávica" para (chamemos-lhe assim:) a candura política e para o seguidismo que dela quase inevitavelmente resulta (o fascismo onde existiu foi sempre, de facto, incomensuravelmente mais o resultado da inacção colectiva das massas proletárias e pequeno-burguesas do que qualquer efeito directo e autónomo de qualquer acção verdadeiramente determinante do grande capital económico-financeiro que dele extraíu, porém, benefícios monstruosos e, de resto, para servir o qual os fascismos históricos existiram); a "vocação atávica" das massas para a agnosia e para a inércia cívicas e políticas que dela directamente resultam, dizia, se sofreu um curto e muito promissor "abalo" no período que vai de Abril de '74 a Novembro de '75 (período em que podia ter finalmente surgido entre nós a "escola individual e colectiva estável da cidadania" que a História nacional nunca verdadeiramente chegou permitir no passado) quase imediatamente voltou à sua condição anterior de "específico mental circunstancial" distintivo de uma certa "lusitanidade" (e até de um certo "iberismo" ou "ibericidade") rurais tradicionais facílimas, como não é difícil entender, de "teleguiar" e objectualmente manipular por quem esteja verdadeiramente interessado em fazê-lo.
E é precisamente por esse motivo (porque a realidade do analfabetismo cívico e político se manteve in/essencialmente estável ou estabilizada na passagem do fascismo para a chamada democracia) que não se me afigura (bem pelo contrário!) despiciendo "re/inventar" alguns dos projectos de alfabetização cívica que, na altura, despontaram onde puderam nos centros operários e pequeno-burgueses do Barreiro a Almada, de Leiria ou da Marinha Grande a Torres Novas e assim por diante.
Este, um aspecto que se me oferece a propósito do texto de São José Almeida, sublinhar: a governamentalizaão não apnas dos partidos como da própria sociedade (portuguesa, neste caso) em geral não resulta de qualquer esforço original de Cavacos Silvas, Josés Sócrates e quejandos.
Resulta, como disse, inevitavelmente do próprio desenho (imperfeitíssimo!) da "democracia" nacional, "estrategicamente desactivada ou nunca activada naqueles pontos em que seria essencial que o não estivesse porque permitiriam tornar orgânico o que chamo o "tempo único" da Democracia.
Que permitiriam concretizá-la e levá-la à prática em tempo real que é o único modo de concretizar e levar à prática o ideal democrático.
Que permitirim evitar que o tempo ou temporalidade democrática se cindisse daí resultando que a negociação democrática do exercício instrumental do poder se convertesse perversamente na negociação objectiva do próprio poder, como acontece hoje-por-hoje entre nós.
A visão de São José Almeida é, a meu ver (e por isso aqui a trago ao próprio seio destas reflexões) emblemática de um equívoco gigantesco que apresenta consistentemente aquilo que é essencial no apodrecimento objectual da Democracia entre nós num mero incidente.
O que é essencial é o modo como o sistema, no seu corpo inastitucionalizado está desenhado. Os Sócrates como os Cavacos limitam-se, diria eu, a ocupar um espaço vazio, um "void", no desenho institucional (e mental! E mental! Não esqueçamos o mental!) português.
Não inventam governamentalizações nem, de um modo mais geral, situações de autocracia objectiva: viajam nelas, instalam-se nelas, achm nelas um habitat político e cívico perversamente (perversissimamente!) ideal.
Não perceber isto é mistificar.
Faz, aliás, impressão o modo como uma jornalista respeitável e respeitada como São José Almeida argumenta alegadas "diferenças" (de substância?) entre um económica, social e politicamente tenebroso «cavaquismo» e o actual «socratismo»: dizendo que este é "diferente" porque não foi buscar para a direcção do "seu" partido político pessoal político de "fora" antes recorrendo a "pê-ésses de carreira"...
Como "argumento", deixa-me francamente perplexo, boquiaberto com a subtileza do raciocínio e da análise, em geral!
Quer dizer: sendo os partidos como o P.S. e o P.S.D. hoje entre nós o que são (isto é: autênticas "fábricas" ou "armazéns"--verdadeiras "linhas-de-montagem"!--de potenciais funcionários e nada mais, em última instância, do que isso: pense-se nos Mários Linos, nos Manuéis Pinhos, nas Maria de Lurdes Qualquer Coisa e por aí fora!...) dizer que recorrer à "malta" aí "asilada" para exercer o poder é contribui, de forma minimamente significativa, para bloquear a tentação governamentalizadora (e/ou para fazer qualquer mínima diferença relativamente aos que inventam governantes "completos" completamente ex-nihilo) é obra, seguramente!
Que o repitam e corroborem "politólogos" e "analistas" como António Costa Pinto ou Marina Costa Lobo não ajuda nada.
Pelo contrário: agrava!
Se os "politólogos" e "analistas" fazem "politologias" e "análises" destas que pensar dos outros--dos que não são nem "politólogos" nem "analistas"?
Só de pensar nisso, sinto arrepios!
E por aqui me fico...
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