quarta-feira, 18 de março de 2009

"Port Bou e Cerbère"

Port Bou (a imponente silhueta da serrania catalã: o Canigou aparentemente adormecido, severamente debruçado sobre um mar, por sua vez, imensamente profundo, gélido e hostil...)

Eis dois lugares que não consigo (nem quero, aliás!) esquecer: Port Bou (de que já falei) e Cerbère, do lado francês.

Julgo que, até ao fim da vida, hei-de recordar sempre aquela "viagem" angustiante num Fevereiro gelado e inimaginavelmente ventoso, pelo cimo da serrania, completamente às escuras, gatinhando, desequilibrando-me a cada passo, tentando desesperadamente orientar-me num escuro que apenas os faróis ocasionais dos carros numa estrada distante rasgavam por brevíssimos instantes mas, de cada vez que o faziam, ainda era mais angustiante porque apenas se conseguiam lobrigar fugazmente ravinas por todo o lado, precipícios incríveis, despenhadeiros medonhos onde o mar ecoava com um rugido difícil de imaginar.

Port Bou (um esplendoroso pôr-do-sol aberto sobre um infinito onde estive a ponto de perder-me...)

Enquanto andei no alto da serra, nunca soube verdadeiramente, confesso, como (e, sobretudo, onde!) cada passo ia acabar: se ainda em terra mais ou menos firme (a rocha por onde me movia tinha reentrâncias agudas que me magoavam os joelhos, os pés e as mãos); se no abismo não-sei-quantos-metros mais abaixo!...
A dado passo, cheguei a decidir flectir na direcção do topo da montanha (o Canigou) e tentar a entrada em França, a pé, pelo cume gelado.

No dia seguinte (depois da peripécia incrível da passagem) apanhei boleia de um tipo que me contou que era comum gente morrer gelada ali, onde eu tinha chegado a pensar entrar...

Até por isso, por não ter sido necessário, nunca hei-de agradecer o suficiente ao comissário espanhol que me ensinou o modo de passar a fronteira sem perigo de maior.
Um comissário fronteiriço!

Foi um gesto absolutamente magnífico de cavalheirismo e humanidade. Nunca hei-de esquecer tão-pouco, a pergunta que me fez.
Ou melhor, a única exigência: a minha palavra de honra!

Já na década de '90, voltámos a Port Bou na vaga esperança de re/encontrá-lo para o abraçar mas claro já nem posto activo de fronteira existia: a casota estava lá mas deserta, completamente abandonada, vazia.

Esta memória aqui serve, por isso, também, para homenagear uma das melhores e mais humanas pessoas que (não) cheguei a conhecer, em toda a minha vida.

Condições verdadeiramente aterradoras [dei um passo decisivo em direcção à maturidade ali, naquela fria casota de cimento onde se amontoavam numa luz difusa que multiplicava a impressão tenebrosa de vulnerabilidade que me invadia--(quantos?) quatro? Cinco? Seis--homens fardados de uma corporação indelevelmente marcada à época por uma reputação dificilmente imaginável em termos de arbítrio e crueldade]; dei, dizia, nesse dia (ou nessa noite) um passo verdadeiramente decisivo em direcção à maturidade ali, naquele gélido e incrivelmente isolado posto de fronteira, meio engolido por uma serrania inóspita e hostil a toda a volta, entre uma Espanha que eu conhecia sobretudo pelo eco das barbaridades cometidas pelo franquismo durante a guerra civil; pelo reconhecido atraso económico, social e político assim como pelo autoritarismo e discricionaridade das suas omnipotentes e omnipresentes forças policiais.
Foi um passo, a um tempo, assustador mas, apesar de tudo, também profundamente esperançoso, de fé não completamente perdida (ou ainda genericamente possível) na condição humana, vindo precisamente do seio dessa tenebrosa instituição de onde, de forma completamente insólita e imprevista, emergiu esse instante de fugaz mas digníssima cumplicidade, por breves momentos, estabelecida entre dois portugueses inimaginavelmente sós, aterrados e perdidos num universo fantasmagoricamente novo e ameaçador e um guarda fronteiriço, por sua vez, inacreditavelmente generoso e humano...
Cerbère (Por fim "à Nous La Liberté!...")

1 comentário:

Ezul disse...

Este é um texto extraordinário, pela profunda emoção que dele transparece, pelo sentido da experiência que relata. E é um testemunho que nos obriga a reflectir, mais uma vez, sobre a natureza humana. Como é possível, depois do ser humano ter adquirido a capacidade de se abrir ao mundo, de criar novos valores, de valorizar o outro, como é possível que, mesmo assim, num passado recente e ainda nos nossos dias, se formem sistemas em que as pessoas são confrontadas com situações extremas de angústia e de desespero? Faz-nos pensar. Afinal, que ensinamentos nos deu a História? Ou o Homem repete os mesmos erros? Ou foi a natureza humana que não evoluiu?
Uma vez, num programa de televisão, um sobrevivente do Holocausto contava que tinha perdido a fé (na humanidade, no sentido da vida) e questionava como era possível viver sem ela.
É uma pergunta que continua a ferir-me e que me assusta, quando reflicto nos dias tristes desta “nossa democracia”, tão incapaz de construir o verdadeiro respeito pelo outro, e que tanto falha na generalização do bem estar, da tranquilidade e do progresso. É uma pergunta que obriga a questionar as escolhas pessoais, o medo ou a coragem que ditam os gestos. Porque eu sei que é difícil ter coragem, é difícil aceitar a ideia que um dia poderia estar no limiar do desespero e sentir a angústia à beira do precipício. Acredito que todos os resistentes foram/são heróis porque dentro deles também resistiu a fé e a esperança, projectada para os dias de Sol, os dias de Paz ou, suprema abnegação, para as outras gerações.
Por fim, o guarda. Alguém disse uma vez que o ser humano oscila entre duas dimensões: ora é um ser capaz dos gestos mais desprezíveis e baixos, ora tem atitudes que o tornam num ser extraordinário. O guarda fronteiriço fez a sua escolha e são gestos como esse que honram a dignidade humana – gestos solidários e desinteressados.

Este é um texto extraordinário, enriquecedor; é uma lição de vida!

Manuela