terça-feira, 17 de março de 2009

"A «nacionalização dos bancos» ou a «privatização da lucidez e do bom senso»?..."


Já o disse noutro ponto próximo deste "Diário" mas vou repeti-lo ainda uma vez: o "Público" de 09.03.09 vinha cheio de "coisas" estimulantes, i.e. de ensejos privilegiados para a reflexão sobre o País e a sociedade que somos.

Um artigo "de opinião" de F. Sarsfiel Cabral intitulado "A nacionalização dos bancos", por exemplo.

É uma daquelas "coisas" que a gente lê e apetece-lhe logo benzer-se!...

Os equívocos e as contradições são, como diz um sobrinho meu adolescente, "mais do que muitos, que muitos não bastam para descrever os que são..."

Eu limito-me aqui a listar uns quantos.

Primeiro, vem aquela mata-mata da nacionalização dos bancos na sequência da "crise" actual.

Aterrado com a hipótese de esta vir pôr em evidência não apenas a sua própria incompetência como, por arrastamento, atestar da razão que assiste a quem critica a "economocracia" global vigente, os neo-liberais de todo o mundo, unindo-se, nunca deixam de, mal lhes põem um jornal ao alcance da mão, juntar-se para esgrimir "argumentos" em (acalorada!) defesa da mera "instrumentalicidade" das medidas de estatização tomadas, no contexto da "crise", pelos governos do "Ocidente" de uma forma geral.

"Não há" (dizem) "a mínima possibilidade de se confundir o que se faz hoje para combater a "crise" com o que um Vasco Gonçalves faz, em '75 com a banca nacional! Vasco Gonçalves queria nacionalizar para sempre: a gente é só atér as coisas "arrefecerem" um pouco..."

Espantosa argumentação esta que parece dar de barato que instrumentalizar de um modo escandalosamente cínico o Estado é preferível a fazê-lo em nome de uma concepção, aliás generosa e sdesinteressada, desse mesmo Estado!

É mau que o Estado use a banca como expressão concreta, activa de uma ideia teórica de Estado que é, afinal, numa palavra, a que deriva, de forma natural e no plano conceptual e filosófico, da ideia civilizacionalmente moderna de Estado-nação ou, como prefiro chamar-lhe, de "Estado consciência" segundo a qual o Estado funciona como a projecção institucional orgânica do interesse e da consciência nacionais como todo.

É assim, aliás, que se compreende a ideia de nacionalizar a banca: compreende-se, pois, equacionando-a precisamente no contexto específico de um projecto global, realmente prático, de (como dizer?) pôr efectivamente o Estado no seu lugar certo na História e na sociedade, em geral.

De pô-lo a funcionar como um instrumento material organicamente concretizador do conceito preciso, histórico, social e civilizacional do Estado como expressão verdadeiramente actuante, operativa, das aspirações reconhecíveis da consciência colectiva.

Ora, isto, pois, dizia, é, ao que parece, "mau"; "bom" é pretender usá-lo como uma mera ferramenta ou alfaia instrumental, utensiliar, que é pontualmente chamada a corrigir disfunões contextuais, devendo, porém, em seguida, cumpridas as tarefas que os "proprietários da História" especificamente lhe encomendaram, regressar docilmente ao limbo de onde foi trazido com funções tão estritas quanto, sobretudo, estreitas, efémeras e especificamente utensiliárias.

Primeiro equívoco.

Outro: mas, se como dizem os neo-liberais (os neo-liberais "soft" ou "sociais" e os "hard core" ou "pós-sociais) o Estado só serve para remendar o sistema quando ele abre fendas, como se explica que seja, afinal a ele que os bons gestores da realidade têm de recorrer quando são incapazes de corrigir os seus próprios erros?

Como se explica que o Estado sirva para arrumar a casa quando ouros a desarrumam , se ele é tão inepto nas "arrumações" que é preciso retirar-lhe ordinariamente as tarefas envolvendo precisamente... "arrumações"?...

Há, aqui, com efeito, qualquer coisa que não joga: o Estado é mau a gerir. Bons são os privados. A verdade, porém, é que quando os privados falham, chamam o Estado para resolver!

Estranho?

Enfim, ele há tanta coisa estranha na vida que mais esta...

Diz ainda Sarsfield Cabral, expressamente, a dado passo--terceiro equívoco:

"[...] uma empresa não é pública por acaso--se assim fosse, deveria ser privatizada" [sublinhado meu].

Ora, é a isto, a "coisas" destas, que eu me refiro quando censuro os "comentadores" em geral de raramente terem ideias que trocam, habitualmente, por esses fantasmas ou espectros disfuncionais das ideias que são as "convicções".

Quer dizer: a "condição natural das empresas" é serem privadas.

Demonstra-se isto?

Não! Acredita-se!

Acredita-se que o acaso deve funcionar, sempre, em todos os casos pelos vistos, como princípio "de episteme" ou "lei geral da realidade" de forma natural, na direcção e no sentido dos privados.

É, dito de outro modo, o velho/novo (pós-moderno ou pós-histórico) princípio do "Estado-broker", "Estado almocreve" ou "Estado funcional" e/ou "utensiliar".

O Acaso, alega-se aqui, é, pois, nosso, das empresas.

Só prescindimos dele por momentos quando as coisas "correm ml".

Mesmo que corram mal por culpa nossa e não do Estado.

Do Estado que ("here we go again!") todavia, de um modo, aliás, muuuuito dificilmente explicável, chamamos em pânico sempre que há dificuldades--ou "crises" como a actual...

Como raciocínio, parece-me realmente notável!...

Bom mas Sarsfield Cabral até admite generosamente a prevalência regular de um banco público--mesmo que seja apenas suposta ou imperfeitamente 'público': a Caixa Geral de Depósitos.

Isto, ainda que, diz ele "naturalmente [...] um banco, ou qualuer outra empresa, do Estado (afinal, parece que... enfim! Continuemos!) pode sempre ser utilizado para servir interesses e amizades particulares (não as de Peyreffite, outras! Quais? Bom, isso agora... Mas continuemos) ou partidárias e não para fins de interesse nacional".

Boa! Afinal não é nem precisamente público nem exactamente privado, o banco que o articulista nos concede: digamos antes que... tem dias...

Ora, do meu ponto de vista pessoal, esta coisa de se admitir a existência de bancos públicos quer, em última instância dizer, que, no limite, de forma implícita, se admite que os interesses do público e do privado não são necessária nem inevitavelmente coincidentes.

Mas admitir isto, é admitir também tácita e (aí sim!) inevitavelmente que pretender que possa estar organicamente limpa de "crises" cíclicas uma sociedade que entrega, diz ela: naturalmente aos privados a gestão dos diversos interesses implicitamente reconhecidos como existentes.

Aliás, é isso mesmo que começam hoje já a admitir cada vez mais abertamente, como se sabe, muitos dos anteriores neo-liberais "puros-e-duros".

Acontece é que, nesse caso, não se conseguirá muito bem perceber "aquela do" "se as empresas fossem públicas por acaso, deviam privatizar-se". Isto é: não podiam ser públicas por acaso mas deixa de haver acaso se forem privadas.

Só que, por outro lado, se forem privadas, há "crises" (porque implicitamente os privados não cobrem tosdos os casos ou todos os interesses dentro do social, por um lado) mas não só: se até as públicas "podem naturalmente ser utilizadas para servir interesses e amizades particulares ou partidárias", imagine-se uma sociedade onde TODAS fossem públicas!!...

Por último, a questão: mas não se pode, ao menos, no caso das públicas, evitar que sejam "utilizadas" desde logo "para servir interesses e amizades particulares ou partidárias e não para fins de interesse nacional"?

Bom... poder talvez se possa só que, para tanto, é escusado contar com Francisco Sarsfield Cabral que tem desde logo o escrúpulo de confessasr que... se há, ele não sabe como!

Ora, se Sarsfield Cabral, que é um reputado economista, não sabe, como hei-de eu--como havemos nós todos, em geral, portugueses--saber e, ao mesmo tempo, defender que o modelo "ocidental" actual, "europeu" e "global" (é disso obviamente que estamos aqui todos a falar!) está no in/essencial, certo e que a consciência nacional, na forma civilizacionalmente ideal de um Estado orgânico e actuante, apenas deve ser chamado a intervir na sociedade real e, em geral, na História para "apagar fogos" e, numa palavra, limitar-se às tarefas im/puramente meniais de restaurar ou remendar pontualmente o status quo??!!

A resposta até nem é difícil de dar e situa-se (eu diria: tentativamente) algures entre a ideia salazarista de uma "democracia orgânica" para gerir os distintos interesses económicos, sociais e políticos existentes numa sociedade des/estruturalmente desigual como são genericamente as do "Ocidente" e, concretamente, as da "Europa" de hoje (por "democracia orgânica" entendia, como se sabe, o ditador um sistema político dotado dos órgãos da democracia, independentemente da circunstância de, em última análise, funcionarem ou não); a resposta, dizia, situa-se, pois, algures entre esse arremedo formal de democracia e um paradigma real e colectivamente participado, estrategicamente apoiado em instituições efectivamente operantes e capazes de evolução mas, sobretudo, um modelo em que o Estado não esteja condenado ao papel ancilar de um instrumento que regularmente se desactiva quando supostamente "não faz falta".

Isso, seguramente.
[Na imagem: fragmento do original da "Política" de Aristóteles.]

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