quarta-feira, 11 de março de 2009

"Port Bou"


Se alguém soubesse os momentos verdadeiramente surreais, de puro susto, que eu passei aqui em Port Bou!...

Aqui, neste "God forsaken" cu-de-judas catalão, tive uma lição de vida absolutamente fabulosa vinda de onde eu menos esperava e um primeiro encontro (ou recontro?...) com uma França "negra", o avesso da pátria de Zola (o Zola de "J' Accuse", por exemplo) ou de Sartre (o Sartre activista, contraditório e---generosamente!---«burguês) que fez questão de vir a Portugal em '74, o mesmo que tinha prefaciado "Aden-Arábia" do Henri Alleg contra o colonialismo francês.

Eu e a Mia vínhamos a fugir da guerra, eu nem papéis trazia, tinha um mandato de captura à ordem da Polícia Militar, acreditava piamente que se conseguisse passar de Espanha para o lado francês (tinham-me dito: tenta a Catalunha: «eles» não contam que passes por ...) estava safo.


Afinal...


Afinal, demos uma série incrível de voltas por aquela falésia imensa, aos trambolhões pela serra, às apalpadelas, de cócoras, a tactear o chão, completamente às escuras para, numa volta do caminho, irmos dar de caras com o posto fronteiriço!

Nem me quero lembrar do que me passou pela cabeça nesse instante!

Pensei: "Pronto! Acabou-se! Já me viram! Se tentar voltar para trás, os tipos vêm todos por aí fora atrás de mim. Prendem-me, claro (eu nem papéis tenho!) e amanhã sou entregue à PIDE! Como é que diabo é que eu fui cair nisto, meu Deus??!!

Como é que diabo é que eu ando aqui quase duas horas às voltas imaginando estar a afastar-me do posto, a contorná-lo, a encaminhar-me sempre para França, a entrar em França e acabo por vir cair direitinho nas mãos «deles»??!!"

Sem outra alternativa (era para aí meia-noite, um parzinho a pé na montanha, de mochilas às costas, completamente desorientado relativamente ao local onde se encontra---que há-de fazer num caso daqueles senão entregar-se?)...


...entreguei-me.
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No posto, estavam uns quatro ou cinco Guardas Civis, um deles lia (juro!) uma biografia de Hitler (sinistra coincidência!) e eu entro por ali e declaro: "Vim entregar-me! Sou português, fugitivo da conscrição em Portugal. Estou perdido. Entrego-me"

O oficial espenhol foi absolutamente fabuloso! Depois de me ouvir em silêncio, olhou longamente para nós e apenas me perguntou: "Dá-me a sua palavra de honra de que o único motivo por que aqui está é não querer fazer a guerra?

Garante-me que não roubou nem matou nem vem fugido da polícia civil por ter cometido qualquer crime?"

Claro que lha dei.

Então, ele acrescentou: "Você compreende que eu só mando obviamente deste lado.

Mas se me garante que é verdade que apenas pretende evitar fazer a guerra, vá falar com o comissário francês. A sua companheira fica aqui. Você vá falar com ele, conte-lhe tudo quanto acaba de me contar. Se ele o deixar passar (virando-se para os outros:) "por aqui no ha pasado nadie, ham?"

Fui falar com o francês, um tipo frio, seco, de olhos azuis gélidos (alsaciano?) que, depois de eu lhe contar ao que ia, me respondeu olhando-me fixamente que o dever de um cidadão é obedecer aos chefes e defender a pátria. Se eu havia sido mandado preparar-me para a guerra, a única coisa que tinha de fazer era obedecer e ir para a guerra.

Ele próprio--explicou-me--tinha estado na Argélia a combater a F.N.L.A e tinha muito orgulho nisso...

Respondi-lhe que não pensava como ele e que aquela guerra não fazia, para mim, qualquer sentido. Que não via como meu dever ajudar a oprimir outros povos, que tinha acabado de me formar, que tudo queria era dar aulas, casar, viver em paz comigo próprio e com toda a gente. Que, para mim, defender a pátria era muito mais educá-la ou ajudar a educá-la na paz do que matar ainda que fosse em nome dela (ou de uma certa ideia que não perfilhava) dela.

Respondeu-me sempre olhando-me com o mesmo olhar gelado que me trespassava: "Bon, ça va! Voilà ce qu'on va faire. Je vous done, metons, quinze minutes pour passer, vous et votre femme. Alors je ferai sortir una patrouille et je la commanderai moi-même, ham?...

Ah! Et je tire bien, ham?..."

Fiquei gelado! Pensei que agora é que tudo ia acabar ali: fuga, hipótese de passar, a liberdade! Só pensava: "Chegarei a estar preso ou irei directamente para um quartel qualquer, para uma companhia disciplinar?"


"Et pourtant..."


[Na imagem: a gare de Port Bou onde (como contarei de outra vez, terminando a narrativa que agora deixo intencionalmente incompleta) dormimos, a Mia e eu nessa noite literalmente única, inesquecível...
Num banco corrido de madeira, com um saquinho de pano contendo tudo quanto tínhamos---um rolo com cerca de 19 "contos", uma "fortuna", para a época!---cuidadosamente entalados entre o corpo e as ripas incrivelmente duras do banco, à mistura com ciganos, contrabandistas, vagabundos, etc.
E uma incerteza verdadeiramente arrepiante, devastadora, inimaginável quanto ao dia seguinte...]

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