segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

"Crónicas da República Oscilatória: Se Calhar Até Há Mesmo Regressos..."


Um texto de Rui Tavares no "Público" de 22 de Dezembro (intitulado "Mas não há regressos") leva-me aqui a reequacionar um aspecto que considero particlarmente relevante no âmbito da consideração teórica da "questão democrática".

É preciso dizer que o texto de Tavares incide sobre a personagem do americano G. Bush e especificamente sobre o modo como essa (aliás tenebrosíssima!) figura de (como dizer?) "elefante amalucado deixado à solta" na "loja de cristais geopolítica" lidou com a recente "crise" financeira que a todos afecta, hoje-por-hoje.

A questão é que a personagem em causa terá declarado algures que (e cito) "abandonou os princípios do mercado livre para salvar o sistema de mercado livre".

Ora, a minha reflexão pessoal sobre este ponto é que, sem se dar seguramente conta do facto, a criatura em causa (e Rui Tavares na esteira dela) acabam, à vez, por levantar aquela que é sem dúvida uma questão absolutamente fulcral em termos de uma equacionação correcta da referida "questão democrática".

Ou seja: é comum ouvirmos papaguear onde quer que seja aquela "máxima" de Churchill onsde se dioz que a "democracia é o pior dos sistemas políticos tirando todos os outros".

Ora, a Democracia talvez o seja.

Aquilo que comummente se entende por tal é que, francamente, já não sei...

A "democracia" para o sistema não é algo de autónomo e essencial: é, sim, como tantas vezes tenho dito, um modo sem dúvida eufónico de "argumentar" no plano (chamemos-lhe:) "significadamente político" um regime económico e de propriedade perfeitamente preciso, definido (e, esse sim, essencial, pelo menos do ponto de vista de si próprio) ao mesmo tempo que almeja ser também um modo social e politicamente seguro de conservá-lo solidamente "preso à História".

Por outras palavras: é comum acontecer dado este papel im/puramente ancilar e instrumental atribuído à "democracia" que as crises desta nada mais sejam, no fundo, que as inevitáveis "crises" fatalmente geradas pela base ou pelo núcleo económico de todo o sistema.

Isto é, dito de outro modo ainda: não sendo, pois, a 'democracia' nem um pressuposto verdadeiramente autónomo de organização social e política nem, de um modo ou de outro, independente das funções precisas que é chamada a desempenhar na tal condição de "argumento político" ou "politiforme" da sua própria infrastrutura económico-financeira, ela acaba por não ter verdadeiramente direito a ter as suas próprias "crises", ficando reduzida a ecoar secundariamente as daquela infrastrutura.

O recentísimo "caso" grego, para não irmos mais longe, evidencia-o, de resto, à saciedade.

Quanto à frase de Churchill, por muito espirituosa que possa ser (e é!) sabendo nós hoje o que sabemos (aqueles que querem realmente saber...) a "democracia" para o 'regime', é seguramente altura de substituí-la por uma outra que será seguramente qualquer coisa como :"A democracia é o melhor dos (não) sistemas políticos para gerir a pura (ou impura...) normalidade do funcionamento das sociedades que dela se reclamam, apenas se lhe podendo imputar para ser o regime político "perfeito" o pequeno "defeito" que é o ser ela completamente incapaz de permitir gerir a maior parte das modalidades de anormalidade comuns ao funcionamento daquele sistema".

Ou seja: não foi apenas Bush (nem "os comunistas" ortodoxos com a questão da ditadura do proletariado, segundo Tavares) quem recorreu (ou quem supostamente recorreu) ao contrário do paradigma comummente aceite de qualquer coisa teórica específica a fim de supostamente salvá-la.

Os ingleses fizeram-no quando se viram a braços com o problema irlandês; os espanhois com o da ETA, os franceses com o independentismo corso e assim por diante. Todos eles suspenderam "estrategicamente" a democracia a fim de salvá-la", quando lhes tocou pela porta gerir circunstâncias supostamente "anormais" do funcionamento político das respectivas sociedades.

Agora, são os americanos quem, primeiro, suspendeu a "democracia", montando a gigantesca (e trágica paródia de regime democrático que se plasmou nos "casos Abu Ghraib ou Guantánamo" (para citar apenas os mais mediáticos) e, logo a seguir, negou como Pedro o essencial do seu próprio "evangelho económico".

A verdade é que parece evidente que tantas "suspensões" da normalidade num regime que deveria ser "o pior de todos excepto os restantes" dá que pensar...

Ora, dando que pensar, permite que se levantem hipóteses de hermeneuse do tipo: "se calhar o problema não consiste numa qualquer fatal incapacidade da democracia para gerir problemas e dificuldades do seu próprio funcionamento, sejam elas de cariz político e económico ou económico-financeiro, como os que atrás se recordam.

Se calhar, o problema reside no nosso modo preciso, concreto, de "imaginar teoricamente" os paradigmas de democracia que comummente temos.

Se calhar a necessidade de recorrer sistematicamente ao contrário teorético ou contrário de episte das "coisas" políticas a fim de reparar as... "fugas" recorrentes ocorridas no 'sistema' em geral, deve-se, em última (mas também verdadeira!) instância, ao modo disfincional, apócrifo, como acabámos (através do projecto aberrante de "utilizar" a política de forma espuriamente secundária a fim de "argumentar" um modelo económico central e inamovível, intransformável) por inverter/subverter completamente a História, também ela abusivamente "usada" para "justificar" a economia ou mais rigorosamente a economocracia vigente.

Se calhar, uma "política" que está, no limite, terminantemente proibida de mudar a História, cabendo-lhe ao invés legitimar um determinado modelo muito preciso dela (é esse o papel neo-conservador da "democracia" hoje em dia: impedir que a História escape ao controlo firme da economia--de uma certa muito precisa economia; uma "política" que tem de resignar-se a permanecer todo o tempo acorrentada a uma História à qual é, pois, vedado mudar no seu in/essencial (pense-se, por exemplo, no "exemplo" democraticamente escandaloso, obsceno mesmo, da "aprovação" do chamado "tratado de Lisboa"), apenas pode gerar mais ou menos regularmente situações "agudas" daquele tipo que obriga a "ir buscar" fora da "democracia" as "soluções" pontuais que está, devido às condicionantes que são impostas de modo exógeno e abusivo ao seu funcionamento, está objectivamente impossibilitada de gerar.

[Na imagem: "Escher por Shane Willis", extraído com vénia de "Sarcasmos Múltiplos"]

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