domingo, 7 de dezembro de 2008

"O 6º Encontro de Teatro Ibérico: Notas de Observação e Crítica"

Rosário Gonzaga em "Memória de Branca Dias" de Miguel Real


Um amabilíssimo convite do Cendrev (Centro Dramático de Évora) e do meu Amigo Armando Nascimento Rosa levou-me a Évora e ao "6º Encontro de Teatro Ibérico".
Dificuldades 'operacionais' de diversa índole impediram-me de fruir de tudo quanto o empenho a teimosia do Cendrev em dar Teatro de qualidade a Évora e ao País em termos gerais preparou este ano para nós.

As tais dificuldades operacionais de que atrás falo fizeram-me, desde logo, perder um espectáculo que queria, de um modo muito especial, ver.

Refiro-me àquele que Filomena Oliveira montou sobre um texto de Miguel Real, "Memórias de Branca Dias", um espectáculo que incluía no elenco uma actriz à qual me ligam laços de particular admiração profissional (a que junto outros de especial simpatia pessoal): Rosário Gonzaga, que espero, porém, ter oportunidade de ver neste seu mais recente trabalho por oacasião de uma prometida futura reposição.

Regularmente, estes "Encontros" de Teatro Ibérico animam a Cidade de Évora, ligam momentaneamente (de um modo, aliás, particularmente vivo e artisticamente... 'militante'!) o País e, como o nome e a concepção global do próprio projecto indicam, não apenas este como, de um modo mais amplo e genérico, a 'Península teatral e cultu(r)al' no seu todo--fazem, na realidade, aquilo que o Ministério da Cultura, desde logo, devia fazer e muitas vezes não faz, isto é, não faz como projecto orgânico consistente: "regionalizar cultu(r)al e activamente" o País ou, no mínimo, encorajar de facto o nascimento neste de uma 'rede' coerente de projectos com esse nobilíssimo objectivo).
Os "Encontros" de Évora desempenham, assim, um papel importantíssimo no sentido desde logo de que todos quantos vivemos fora das grandes cidades (leia-se: Lisboa e Porto, talvez Coimbra e arredores...) possamos por momentos reencontrar-nos não apenas com aquilo que se vai, dentro e fora do País, fazendo de novo em Teatro como inclusivamente uns com os outros e com aquilo que cada um daqueles que aqui fatalmente por esta ocasião revemos traz de relevante para a Cultura no que esta pressupõe de mais apaixonadamente puro e determinadamente não-"comercial".

Não mercenário.

Pela minha parte, devo dizer que revi com especial interesse e emoção, para além do sempre empenhado José Russo (a propósito de quem guardo, em termos artísticos, a memória de um Beckett sem palavras verdadeiramente fabuloso!); a Maria Estela Guedes (autora entre outras coisas de uma notabilíssim' "A Boba" a que noutro momento e lugar regressarei com o detalhe que merece; a Maria Estela é uma frequentadora assídua destas iniciativas do Cendrev cuja presença é hoje-por-hoje já absolutamente indispensável!); o Armando Nascimento Rosa, outro habituée das mesmas, desta vez dramaturgicamente presente com um dos seus pessoalísimos "objectos drâmicos" sempre estimulantes e provocatórios "Antígona Gelada" (outro trabalho, aliás, cujo visionamento, por razões onde a vontade mais uma vez não entra, sempre pelos mesmos motivos, tive de adiar...) ao mesmo tempo que me era dado... em compensação, ficar a conhecer um pouco aquela que desde já considero ser a grande "provocação" da edição deste ano: Angélica Liddell.

"Epígona de" Anaïs Nin e Sade [com Francis Bacon, por exemplo, assim como algum do melhor Pasolini, à mistura: Pasolini, sobretudo, anda, a meu ver, admissivelmente muito por ali--o Pasolini agudamente sensível e (auto?) mutiladoramente seminal que usa a sexualidade como referência obsessiva, verdadeiramente pan-metafórica, dos mais diversos aspectos aspectos da dolorosamente vulnerável/vulnerabilizadora "condição" humana...]; eco vivo (talvez inconsciente mas nem por isso menos incisivo e actuante!) do teatro artaudiano dito 'da crueldade', "citadora" expressa de Ophüls ("Lola Montes") e--é uma, talvez ousada, tese pessoal minha, desculpem-me e desculpe-ma a autora...--subtilmente implícita da "subcultura" do "gore" (das estimulantes "ale-gore-ias pós-cultu(r)ais") de Carpenter (1) a, por exemplo, Cronenberg (2), Liddell patrocina com a sua escrita implacável e cortante, impiedosamente esclarecida, a construção de alguns dos mais "feericamente dilacerantes" "rasganços" que conheço, textos visuais dissecando em profundidade os "dessous" ("les caves", como escrevia Gide, a propósito do "Vaticano", num título famosíssimo) do nosso tempo de que exibiu gravações video que nos dão, por sua vez, um sopro particularmente excitante da sua Obra e nos fazem desejar conhecer sempre mais dela.

Dela, obra e dela Liddell.

Mas sobre as "textualidades" ou "reflexões volumétricas e holográficas" (ou... "holografizáveis") "abissais" de Liddell é essencial ver e reflectir um pouco (ou, pelo contrário, um... muito?) mais antes de avançar com quaisquer "conclusões" minimamente justas porque também minimamente rigorosas.

Para já, fica, sem dúvida, o apelo--o puro fascínio!--de um Teatro que se dirige violentamente a todo o corpo e que (graças a Deus!) consegue finalmente feri-lo...

Do que vi, valorizo particularmente um eficientíssimo trabalho de actor de Luís Assis em defesa de um "objecto textual" seu (se a propósito de Artaud se fala de um "teatro da crueldade" sugiro que referindo-nos a "textualidades"--argumentativamente--na essência "funcionais" como esta de Assis se fale, por exemplo, de um "teatro da plena ou da integral (da "íntegra"?) objectualidade"); um texto que o actor/autor (o "auctor"...) domina com rara mestria e onde se ouvem muito ao longe, diria eu, ecos "reflexionais" e/ou "criticionais", muito discretos embora, de um certo Tchekov, o Tchekov d' "Os Malefícios do Tabaco", por exemplo; o de Ana Palma em "On The Road/A Hora do Arco Íris" de Carlos Pessoa, um texto onde me parece que é sobretudo meritória a tentativa (o 'projecto drâmico' geral) de "ligar" organicamente Kerouac (a, hoje-por-hoje, cultu(r)almente arquetípica errância kerouac-iana"), por um lado e o universo referencial da Mitologia clássica, por outro, ao concreto da experiência histórica recente portuguesa (reflectida no "espelho vivencial"--"vivenciável", "vivenciado"--da "heroína").

A peça vive em larguíssima medida (ou re-vive nessa mesma larguíssima medida) do trabalho da actriz, sozinha em palco com os seus "ecos" o tempo todo da peça, ocupada em "ir continuamente despertando para a vida", com um brio aliás inexcedível, um texto que é, de resto, um dúctil, fluido e eficaz colaborador seu no sentido preciso em que faz (ou parece fazer) absoluta questão de, em caso algum, se intrometer com (chamemos-lhes assim) demasiadas "especificidades textuais" próprias no trabalho dela, neste não "intervindo" usualmente, de facto, com muito mais do que uma sempre corajosa e destra, digníssima, funcionalidade.

Igualmente poderosa a cenografia, plasticamente muito esclarecida e subtil, consistindo numa espécie de estrada ou plataforma abrindo, por um lado (exactamente o "nosso"...) directamente para o abismo ou para o vazio do fosso da orquestra, delimitando, assim, com extremo rigor (ou com extrema... ferocidade?) um percurso implacavelmente imposto à personagem e cujos "pólos" são, pois, esse mesmo vazio--do qual, enquanto audiência, de resto, participamos no sentido em que, até fisicamente, deste modo "le vide c 'est nous"...) e, por outro lado, uma cabana-útero tendendo para o infinito (ou a meio caminho entre um caótico cada vez mais desmembrado 'agora' e a dissolução/total des-integração que se adivinha e que o agudo, pendular, sublinhar do frenesi da encenação sugere, aliás, com extrema eficácia); cabana ou lapa retro-uterina essa à qual se recolhe (à qual regressa, à qual retrocede!) ciclicamente, como n/uma obsessão e/ou num pesadelo, a... "vítima" principal do espectáculo.

Um achado plástico e concepcional, bastando, por exemplo, ver a imagem que o programa seleccionou para referir e sintetizar graficamente a peça para se ter uma ideia da sua (quase dolorosa!) beleza assim como do seu poderoso "significado" último.

Por fim, falo de "El Ángel de la Luz", pelo "Al Suroeste Teatro" com encenação de João Mota.

Também aqui o foco do interesse objectivo se situa menos, diria eu, no texto como tal do que propriamente no espectáculo enquanto todo.

No espectáculo como "objecto", digamos assim.

No espectáculo mais uma vez como "objecto total", se assim me posso exprimir.

Porque o texto é mau?

De modo algum mas porque, também ele, não pretende impor-se ao que resulta ser, na sua essência, uma experiência visual total poderosíssima.

Uma (diria eu) quasi-ópera em que o libreto aponta o caminho cujos desenvolvimento e 'gestão' entrega, porém sabiamente, de imediato, à encenação.

Espectáculo de vítimas, de mortos-vivos ou de vivos mortos (João Mota "cadaveriza" deliberadamente algumas das figuras, cobrindo-as 'generosamente' de uma cinza que é tanto uma "coisa" quanto um "conceito" ou um ponto de vista crítico--é, aliás, muito mais qualquer deles do que uma "coisa", obviamente!) há, curiosamente, neste "João Mota" particular uma espécie de regresso (talvez) inconsciente a um dispositivo cénico extremamente apelativo e subtil usado pelo encenador na sua "quase mise-en-scène" de "All That Fall", na Comuna: o véu que separa/une a audiência ao próprio espectáculo.

Quase uma marca de digno pudor relativamente à tragédia, o encenador chama com ester dispositivo cenográfico a atenção para o "imperativo ético" de olhar os dramas da condição humana sem profaná-los com o olhar demasiado fácil e demasiado invasivo da (sobretudo) mera, fria (alienada de "alienu-", alheio") constatação.

Com o indesejável distanciamento e/ou alienação que resultam daquilo que os anglo-axónicos expressam como algo "too much taken for granted".

Cuja representação-limite é, diria eu, o olhar televisivo ou "televisional", in/essencialmente passivo e fácil--insisto: alheio.
Alienado e alienador.

Resulta assim exigir, pois, sempre uma espécie de "esforço simbologicamente ulterior e adicional" (um espaço de investimento e reflexão--potencialmente?--críticos e de partilha vivencial com a própria acção) a nossa abordagem pessoal daqueles dramas e daquelas tragédias que, em resultado desse esforço, passam a ser agora, também, diria eu, um pouco mais, as nossas próprias.

No conjunto, uma construção extremamente eficaz--operática, como disse--não-raro poderosamente arrebatadora.


NOTAS

(1) O injustamente menos-prezado Carpenter cujas "ale-gore-ias terroríficas" desmontam, a meu ver, de uma forma, por vezes, tão minuciosa quanto, sobretudo, lúcida e dilacerante, algumas das taras e obsessões mais dolorosamente presentes nos "dessous subjeccionais" da nossa neurótica "(pós) cultu(r)al" época "neo"-moderna.

Sempre foi, com efeito, minha impressão que existe no cinema de um determinado núcleo (aliás muito... in-orgânico de cineastas!) como Tobe Hooper ("Poltergeist"), Frank Marshall ("Aracnophobia") ou este interessantíssimo Carpenter ("Halloween II", por exemplo, um dos meus "Bês" favoritos de Carpenter) uma reflexão encriptada sobre a nossa época e especificamente sobre os terrores que obsessivamente lhe subjazem e a atormentam ("haunt it"...) fazendo-os coincidir, de um modo que é particularmente esclarecido e incisivo no caso de Carpenter, com a ideia de um "terror" que assim, só aparentemente surge como algo de gratuito, aleatório, vazio e, sobretudo, (cultu(r)almente) inocente.

(2) De Cronenberg, valorizo especialmente um fabulosamente "beckettiano" "Spider" onde o "terror" se "volta todo para dentro" e "enquista" numa meta-alegoria fabulosamente auto-dilacerante que constitui (a meu ver, pelo menos) uma das mais excitantes e, até, possivelmente definitivas "homenagens narracionais" alguma vez prestadas ao genial criador de Godot.

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