Conforme ainda não há muito me propusera, vou hoje abordar aqui um dos meus textos teatrais contemporâneos preferidos: "A Boba" de Maria Estela Guedes.
Gostaria de empreender essa (aliás, gostosíssima!) tarefa, retomando por momentos uma expressão e um conceito de outro jovem dramaturgo contemporâneo, Armando N. Rosa, autor de um "O Eunuco de Inês de Castro" onde elabora, em posfácio, a sua interessantíssima teoria, de cariz antropológico (orientada numa direcção e num sentido estimulantemente junguianos] envolvendo o que o seu autor designa pel' "o complexo de Inês".
Desde já confesso que, a partir do momento em que travei contacto com o conceito, que o mesmo não cessou de fascinar-me assim como de estimular, dos mais diversos modos e nos mais diversos sentidos, a minha própria reflexão pessoal sobre o que entendo constituir uma espécie de "mitema" mais ou menos estável e característico (caracterizador!) de uma certa "portugalidade adquirida" que no "complexo" em causa, tal como eu próprio o concebo, se revê tão estável quanto, em tese, sobretudo, topicamente.
Também a mim, com efeito, se me afigura que da "personagem" de Inês de Castro tal como é tratada no mitário popular acaba por "sair", acaba por se... "evolar" ("is eventually released") uma espécie de "representação arquetipal" mais ou menos residuante, nítida e distintiva, final, a que poderíamos efectivamente chamar um "complexo" num sentido junguiano próximo, diria eu, daquele que Nascimento Rosa propõe no posfácio do seu "O Eunuco..."
Em meu entender, os traços essenciais do "complexo" em causa prendem-se basicamente com o que entendo ser uma 'percepção consistente e típica da decadência' trazida para a--e fixada na--(sub) consciência colectiva nacional por sucessivas vagas da remota "inteligentsia" nacional que, desde Gil Vicente (uma das "influências" possíveis d' "A Boba") se foram fazendo (ou não...) ouvir pelo País.
Após o período dourado das descobertas marítimas (e contra o pano de fundo subjeccional que uma certa ideia triunfante delas levou a que se enquistasse duradouramente na trans/História Mental do País) que, com efeito, a ideia de "perda" e "decadência" se começaram a instalar mais ou menos estavelmente nesta.
A ideia de "perda" (emergente de um 'biblismo' abstracto que reporta tendencialmente tudo à ideia de "paraíso perdido" e, no limite, à de percurso iniciático-expiatório necessário para "recuperá-lo") vem, por um lado, potenciar mas também, por outro, conferir algum sentido secundário à própria noção/percepção da decadência como tal, entrelaçando-se as duas sugestões de tal modo inextricavelmente, diria eu, que, a dado passo, passam a operar de facto como uma única.
Liga-as, desde logo, a pulsão neurotizante para a compensação (para o "rebalanceamento compensatório cultu(r)al/existencial-colectivo") que, desse modo, encontra uma maneira existencialmente tolerável de habitar a História, invocando, já aí, sem dar substantivamente por isso, continuamente a Morte como parte integrante da "cura" de que o País precisa.
A própria ideia de uma expiação ou penitência conduzindo, em tese, como vimos, à "re-conquista" final do "paraíso" ao mesmo tempo que confere, como disse, sentido à própria decadência prepara (eu diria: habilmente) o corpo nacional para a Morte.
Isto é: a Morte "faz cada vez mais falta" para que a História possa reiniciar-se tal como era.
Se a vida é má, porque não a Morte--uma morte que traga consigo uma outra vida?
Como, porém, a "realidade resiste sempre" não dando mostras de ceder (de abrir nesta vida espaço material, concreto, para a 'reconquista' em causa), a Morte que, no início do processo representacional não passava de uma mera "estação propiciatória" ganha, a meu ver, um peso crescente a ponto de passar, em diversas circunstâncias, a constituir o próprio "centro determinacional significador" de todo aquele processo.
Um processo de cariz manifestamente neurotiforme caracterizado pela circunstância intrínseca, sistemicamente contraditória, de de a "cura" não se distinguir no fundo da própria doença ou mesmo se situar, em última instância, nela.
O que eu digo é que, retornando continuamente sobre a arquitectura essencial da própria representação como todo, a Morte traz consigo um conforto adicional que abre a porta directamente ao mito e ao complexo: dispensa a acção, dispensa a necesidade de agir.
A Morte é, com efeito, por definição, a glorificação ideal da passividade--uma passividade que basta cada vez mais para obter a desejada "reconquista" do paraíso.
A Inês de Castro (é dela, recordemos, que estamos aqui a falar, é a "ela" que reportamos, de facto, o essencial das reflexões aqui enunciadas) bastou, no fundo morrer para "ser rainha", no mitário nacional inêsiano tópico.
Morrer não é, pois, aqui já um mero incidente--é um pressuposto e uma condição.
Se não morresse, Inês continuaria fatalmente a ser "a estrangeira", o "perigo" político, é verdade, mas também (e, num certo sentido, sobretudo!) erótico: é bela, é sensual e, acima de tudo, nega, enquanto pessoa que se impõe objectualmente ao próprio peso inerte da ordem cultu(r)al estabelecida com os seus fantasmas e tabus herdados da formatação judaico-cristã dos paradigmas básicos de pensamento, o valor" especificamente religioso e, em geral, cultu(r)al que está (imperfeitamente) escondido no auto-negar-se sexualmente de forma consistente, sublimando decorrentemente (uma outra forma circunstancial clara de morte, isto é, de integrar e valorar a Morte) a auto-mutilação nas ideias/alibi de "missão"--de "missão sacrificial"--e de "dever" (Cf, por exemplo, a figura/personagem mitiforme de D. Isabel, mulher de D. Dinis, a esposa-mãe perfeita--a santa).
...A "santa" que Inês tende, aliás, a tornar-se (Lopes Vieira, n' "A Paixão de Pedro O Cru" sugere-o, eu diria, quase... ostensivamente) quando (e porque, lá está!) "aceita cultu(r)al ou simbologicamente" morrer...
O "complexo de Inês", então, tal como eu o vejo, consiste basicamente nisto: na "transferência" (termo que não uso aqui gratuitamente, aliás!...) para o domínio sacrificial/ritual da Morte do in/essencial dos paradigmas cultu(r)ais de (não!) intervenção individual e colectiva nos processos de (não!) transformação da realidade, como arquétipo ideal e perfeito de posicionamento dos indivíduos e das sociedades perante a acção e perante a própria realidade como tal.
É aqui que "entra" "A Boba".
Aquilo que Estela Guedes faz (ao mito, à construção mítica) em "A Boba" é bloquear (é, de facto, inverter por completo, subverter) a própria marcha inerte do processo de fixação e reprodução mitogénicas, libertando por completo (libertando-os como "proposta de programa inicialmente pessoal de inteligência contra-cultu(r)al da realidade") dos demónios que ele, processo, esconde.
O que ela faz é re/assumir uma postura de obstinada e esclarecida, quase dolorosamente lúcida resistência (outra palavra a cujo uso não recorro, de modo algum, aleatoriamente): uma resistência, diria eu, feroz (verbalmente feroz, com certeza!) assente num controlo admirável da matéria textual, da palavra, da imagética, de todo o edifício textual onde, de resto, a revolta e a insurreição têm início.
De facto, ela, em momento algum, se limita a "brincar" ou a "jogar" (mesmo verbalmente) com o mito, com o "complexo": o que ela faz não se chama, com efeito, 'brincar': o que ela faz, como disse, é resistir, denunciar, impiedosamente expor, dissecar, repropor.
O que ela traz é, no fundo, a cura, a verdadeira cura, o lancetar do "quisto" ou do "gânglio mítico", expondo em toda a sua extensão o volume da massa icórica nele enquistada.
O que ela propõe é o mergulho, aquilo que uma certa 'antipsiquiatria' particular designa pela expressão "derrocada esquizofrénica" i.e. a explosão neurótica que tocando o fundo da doença há-de idealmente trazer o sujeito de novo para a superfície.
A subversão cultu(r)al (o projecto pessoal, como disse, de 'inteligência da realidade' que Estela Guedes empreende corajosamente na peça) manifesta-se nesta de diversdas maneiras--não se escusando, diria eu, de tocar em "nervos cultu(r)ais" verdadeiramente sensíveis senão mesmo críticos.
Senão vejamos, por exemplo, o seguinte: tal como eu, pessoalmente, creio que Beckett faz (de forma aliás, recorrente e característica--caracteristicamente sarcástica, sardónica, escarninha) com o ritual celta do enterramento votivo, faz Estela Guedes na su' "A Boba" com o sacramento cristão católico da confissão: não é toda a peça uma?
E não é esta a própria 'confissão' de um país neurótico que se refugia (e que "cura" ou imagina curar!) as suas neuroses mais tópicas e estáveis na mitificação (muito mais da própria Morte como tal do que de qualquer outra coisa); não é ela, peça, a confissão em causa, mediada "par dessus le marché" por (imagine-se!) um bufão, neste caso, uma bufona desbocada e disforme--o lado mais negro (precisamente porque tenazmente resistente à mitificação) do próprio País?
A boba é, na sua deformidade, de algum modo paradoxalmente, o lado residualmente são da portugalidade.
É ou são (persiste, sobrevive-se n) os intelectuais que não se rendem ("não sou igual a vós, não reproduzo os vossos valores", diz ela textualmente a dado passo), nas consciências que mantêm o vício obstinado do esclarecimento e da lucidez.
Como Maria Estela Guedes, a autora deste fascinantemente contra-cultu(r)al projecto de seriíssima reflexão sobre a portugalidade, suas taras e seus mitos, seus modos de pensar (se) mais estáveis e distintivos.
Sobre a portugalidade e seus "complexos".
Sem comentários:
Enviar um comentário