Digo de Robert Mamoulian porque é sobretudo da versão cinematográfica da obra de Stevenson dirigida por Mamoulian que vou aqui falar.
E isto por uma razão fundamental: porque não sendo talvez a mais famosa é seguramente (para mim, pelo menos) a cinematograficamente mais interessante assim como sexualmente mais ousada--ainda que, por exemplo, a de Victor Fleming, feita na década seguinte, de '40, tenha, como se sabe, Spencer Tracy e, muito em especial, a incomparável Ingrid Bergman no elenco e exista uma outra, anterior às duas, que possui no 'cast' nada menos do que o famosíssimo John Barrymore.
Esta, a de 1932 tem, como se sabe, Frederic March no duplo papel-título e uma belíssima Miriam Hopkins (uma eficacíssima e por vezes fortemente impressiva "quasi-Dietrich", a Dietrich de "Der Blaue Engel" de von Sternberg...) no principal papel feminino.
O filme de Mamoulian possui, de resto (e por aqui começava, aliás, a respectiva--necessariamente muito breve--abordagem) além dessa espécie de discreta "memória" ou de... "tributo", ao menos objectivo a Dietrich, uma das encarnações, cinematográfica e até cultu(r)almente referenciais, do erotismo enquanto "pecado" e "perdição" humanos, como se sabe; de Dietrich como encarnação verdadeiramnte arquetípica da sexualidade e como imagem definitiva de--perdoe-se-me o «macarrónico»...--"vulva devoratrix" (num sentido muito próximo daquele que a tradição judaico-cristã atribui não só a Eva como a tantos outras referências arquetípicas bíblicas, de Betsabé ou Dalila a Maria Madalena); o filme possui, dizia, outras sugestões e ecos admissivelmente europeus não muito dificeis de detectar ou, no mínimo, de supor: é que, tendo o filme de Mamoulian ainda muito de especificamente teatral (e esse é, de resto, como veremos, por diversos motivos directamente ligados à própria evolução da ideia ou ideias de Cinema, outro aspecto particularmente interessante do filme) o seu habilíssimo realizador nunca deixa de (como dizer?) tentar conservar o filme, por outro lado, sempre "estrategicamente re/cinematizado" através do recurso ao uso de curtos planos de exterior onde a "sombra" muito subtil do europeíssimo expressionismo alemão é, a meu ver, uma presença francamente reconhecível e impressiva.
Façamos, porém, incidir a nossa abordagem um pouco mais sobre aquilo que o filme de Mamoulian possui de, como disse, essencialmente teatral--operando mesmo , pode dizer-se, sob inúmeros aspectos, como uma espécie de discretísimo "missing link" (e objecto de estudo) sobre a sintaxe das relações entre o Teatro e o Cinema (um tema, aliás, que, com o recente centenário de Manoel de Oliveira e as respectivas, conhecidas, posições no âmbito de uma "cinematicidade pura assumidamente rendida à palavra" e mesmo abertamente ao Teatro como chave para a reconquista daquela ideal "pureza", é mais actual do que nunca).
Basta, voltando à abordagem da "teatralicidade" do filme de Mamoulian e para demonstrá-la, considerar, por exemplo, o uso exaustivo dos interiores (o que, aliás, só por si não justificaria obviamente a afirmação mas enfim...) como toda a técnica de representação dos actores principais (March é disso, aliás, um exemplo claro) ou até mesmo de certas passagens do próprio diálogo (as "conversas" de March/Jeckyl/Hyde com Deus, para não irmos mais longe...).
Mas não só. Esses são, diria eu, aliás, aspectos, sobretudo, exteriores não tão intrínsecos, tão de essência como outros que a seguir refiro.
Há, com efeito, a meu ver, facetas e/ou marcas muito mais estruturais de "teatralicidade" no filme.
Essas situam-se, de algum modo, logo naquilo que poderíamos (ou que podemos, de facto!) considerar o próprio 'núcleo témico' essencial do filme.
É minha opinião que esse passa, de facto, exactamente por aí, isto é, por um redescobrir cultu(r)almente 'aggiornado' do arquétipo conceptivo do "tabu" o qual constitui, como é sabido, uma das primeiríssimas modalidades de "teorização" humana e/ou de "causalização" estável da realidade conhecidas e, aliás, continuamente redescobertas pelas sucessivas culturas humanas, desde o já atrás citado mitário évico/adâmico a muito do que substanciou a concepção grega clássica de tragédia (cá está o tal aspecto teatral intrínseco de que atrás falava!) para já não citar todo o motivário transcultu(r)al de inspiração diversamente prometaica, digamos assim.
A ideia de que o mal se abate sobre o humano quando determinadas 'leis' da realidade são violadas, muitas vezes, involuntariamente pelo "herói" trágico constitui, repito, uma das modalidades originais de re/organização teórica e/ou de causalização duradoura daquilo a que, à falta de melhor expressão, poderíamos talvez chamar o 'fluxo realicional', isto é, o continuum de facticidade oriunda do exterior possível da consciência e depositando-se continuamente nela sob a forma originalmente reflexa e, em seguida, reflexiva de um pensamento.
No filme de Mamoulian essa ideia arquetípica da violação (aqui não propriamente involuntária mas certamente irreflectida) de um círculo ou território tabu (a iconoclasia do protagonista como modalidade limite de rebelião contra a ordem estabelecida, sob muitos aspectos inequivocamente contestável) aparece contraditória (aparece dilacerantemente. Aparece tragicamente!) associada à de uma, em si mesma correcta, justa, reacção contra o óbvio farisaísmo de uma sociedade (a vitoriana, expressamente "citada", aliás, num plano onde a efígie da rainha Vitória surge significativamente ao centro...) que esconde os seus podres (a sua miséria, as suas inúmeras cobardias e mentiras, individuais e colectivas) fingindo hipocritamente ignorar todas elas.
E é precisamente desta contradição representada pela emergência de uma rebelião em si mesma justa (não por acaso, Jeckyl refere que sem afrontar de forma corajosa e até, às vezes, muito prometaica, as formas por sua vez muito concretas e muito precisas que pode assumir a ordem estabelecida, a própria ciência não encontraria as condições básicas para existir); é precisamente desta contradição, dizia, representada pela emergência de uma rebelião em si mesma justa contra a opressão exercida por aspectos, entendidos ao invés como indesejavelmente opressores, da própria ordem estabelecida como tal, levada, porém, a um limite já claramente violador que nasce a tragédia.
A lição do filme aparece, assim, pois, num primeiro momento, como um apelo muito obviamente conservador (reaccionário, mesmo) à contenção (à prudente mutilação) da própria iniciativa/revolta individual contra a Ordem e como uma séria chamada de atenção aos putativos "Prometeus" das sociedades humanas em geral.
Em meu entender e como adiante veremos não é, porém, forçoso que seja precisamente assim.
Antes, todavia, de regressar a esse ponto, foquemo-nos ainda noutro aspecto particularmente interessante (e intelectual e criticamente muito estimulante) do filme: aquele onde a modernidade de Stevenson e a subtileza, o esclarecimento, a inteligência, do próprio Mamoulian se acham expressas, de modo, diria eu, mais firme e claro.
É que "Doctor Jeckil And Mister Hyde" é também já (o filme é disso claro documento) um testemunho ficcional importante sobre a perda definitiva da inocência cultu(r)al de toda uma sociedade cujos fantasmas mais profundos--em termos políticos e geopolíticos, até à Primeira Guerra Mundial; em termos epistemológicos e filosóficos, cosmovisionais, até à grande "revolução coperniciana" que foi a emergência de Freud e da psicanálise--haviam podido ser genericamente mantidos sob controlo e tranquilizadoramente contidos num limbo "de segurança" mas que vêm agora decididamente atormentá-la e mesmo assombrá-la de forma, repito, definitiva e absolutamente irreversível.
A própria tragédia individual humana associada à responsabilidade de decidir, de optar, de agir numa e sobre uma realidade onde a consciência "entra sempre, de um modo ou de outro, completamente às escuras" numa eterna e angustiante busca de referências condutoras (motivo que se achava, a meu ver, no próprio cerne da ideia grega clássica de tragédia); a própria tragédia humana da Responsabilidade e da Culpa individual e colectiva (no limite: do arbítrio e da própria liberdade humanas como tal, insisto!) se complexifica de forma drástica e inquietante num 'universo concepcional' inteiramente novo onde já ninguém parece saber realmente qual o papel desempanhado pela vontade (lá está: pela própria liberdade humana como tal!) e, ao invés, qual o de condicionalismos profundos, pulsionais, em larguíssma mas indeterminada medida, objectivamente inacessíveis ao controlo dessa mesma vontade.
Num 'universo concepcional' onde o Eu se cindiu já ele mesmo de modo drástico e irreversível iniciando definitivamente a 'modernidade epistemológica'.
A ideia da "divisão" (ou da "implosão" e/ou "des-integração" final da consciência motivo a que vão dar expressão teorética moderna pensadores como Kirkegaard ou Husserl e, num plano, num certo sentido mais acessível, Sartre, Camus e os "exitencialistas" nascidos do desenvolvimento da reflexão husserliana e kirkegaardiana) está toda ali, em Stevenson como em Mamoulian, podendo mesmo em tese dizer-se que com o primeiro e com a obra literária que criou ficou afinal também criado um novo "complexo" cultural, em termos junguianos--um "complexo" onde se acha arquetipicamente consagrada a trágica impossibilidade humana de re/unir-se estavelmente num só "objecto" auto-percepcional e auto-representacional, ilusão que, durante séculos, porém e como se sabe, a consciência pudera ainda, tão duradoura quanto genericamente, permitir-se.
Antes de terminar, faria ainda referência a um aspecto importante do filme.
Eu disse atrás que ele tinha ainda muito de teatral, quer extrínseca quer, sobretudo, como acabei de tentar brevemente demonstrar, sobretudo intrinsecamente.
Julgo tê-lo feito relativamente a alguns aspectos, a meu ver, essenciais.
A verdade desse facto, porém, não obsta a que haja no filme 'coisas narrativas' verdadeiramente interessantes e originais: certas metáforas muito... "hitchcockianas", por exemplo (estou a lembrar-me de uma "cópula" praticada entre a ponta de uma bengala e uma liga que, de algum modo antecipa essa outra cópula metafórica clássica praticada entre Cary Grant e a esplendorosa Eva Marie Saint por intermédio de um combóio que entra num túnel, na sequência final do prodigioso "North By Northwest"...) mas, sobretudo, certos movimentos ousadíssimos de câmara entre os quais destaco pela sua originalidade e "coragem narativa" toda a sequência subjectiva inicial à qual Robert Montgomery... "irá buscar" a ideia do seu clássico "Lady in the Lake" de 1947...
E finalmente a prometida referência ao motivo ou motivos pelos quais acredito que a "mnsagem" final do filme não tem necessariamente de ser conservadora nem reaccionária.
É, a meu ver, com efeito, possível pensar que aquilo que Mamoulian nos está a dizer é que uma sociedade onde o projecto moral, ético e político, de tentar achar formas (auto) funcionais de unidade para a consciência e para as modalidades de acção individual e colectiva nelas assentes é substituído por um outro assente por sua vez na dissociação entre as representações estáveis de Bem e de Mal pode, em última instância ("en fin de partie", como diria Beckett) desembocar numa sociedade fundada exclusivamente na representação im/pura do Mal, uma sociedade onde a liberdade possível, do indivíduo como do colectivo, não desempanhasse, no fundo, qualquer papel reconhecível e determinante, uma sociedade do Mal absoluto como aquela que se acha apocalipticamente simbolizada nos crematórios de Auschwitz ou Treblinka...
Até por isso, por ser um interessantísimo objecto de cinema ao mesmo tempo que "par dessus le marché" permite ainda reflexões desta natureza vale seguramentde a pena re/ver este belíssimo "Doctor Jackil (Doctor Jackal?) And Mister Hyde (Mister Hide?)" de Rouben Mamoulian.
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