segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

"A igreja dos Anjos"

Um acaso de pesquisa, conduziu-me até esta saudosa monstruosidade barroca situada em pleno coração dos velhinhos Anjos. A nossa casa (uma moradia "corpulenta" já demolida há muito!) situava-se a dois passos da sua mole ternurentamente pesada e feia.
Pessoalmente, tive-lhe durante anos um terror mortal.
Desde os tempos da "catequese" feita na tenebrosa sacristia (julgo que o era) situada na rectaguarda, no cimo de uma escada estreita com janelas de vidros sujos que nos ocultavam permanentemente a visão da rua e acentuavam a ideia irresistivelmente instalada algures no semi-consciente de cada um de que o inferno afinal era "por cima" e de que íamos, pois, "subir até ele", num tenebroso percurso de sombras e poeira milenar (corpos anónimos misteriosamente ali depostos a fim de se irem progressivamente desintegrando?...).
No meu espírito (desde que, em Moura fugi, uma noite, pela calada, da minha prima Chica aterrado com uma procissão "das velas" que para mim era sobretudo "das trevas", das trevas ondulantes, viscosas e ameaçadoramente ladainhentas...); no meu espírito, sobretudo infantil, dizia, sempre se misturaram de forma inextricável a Igreja (e esta dos Anjos deu um contributo verdadeiramente decisivo para isso...) e o sangue, o horror--numa palavra, a devoção e a morte.

A piedade e o cheiro das coisas velhas, negras e queimadas.

"El Cristo de los gitano, siempre con sangre en las manos, siempre por desenclavar", como escrevia o grande Machado.
Hoje, essa impressão faz-me, sobretudo, sorrir.

...E ter uma saudade imensa do tempo em que até o medo era inocente e puro e podíamos tê-lo porque ele apenas existia na proximidade do refúgio de um bairro que era mais do que um sítio uma alma e um segundo corpo solidamente ligados a nós quando precisávamos de nos esconder de uma certa Noite que era, na realidade, um património comum--e, no fundo, feliz!--vinculando solidamente toda a tribo...


A Almirante Reis, na esquina com a rua Maria Andrade. A raia do universinho muito salazarentamente 'burguês' dos Anjos... Aqui ficava, com efeito, uma fronteira entre a "casa" e os "serviços" de luxo da época: o cinema (o "Lys" de cuja perspectiva estamos aqui a olhar...); a pastelaria (a "Delta") onde se podia ir comer um "garibaldi" com um quarto de leite "Vigor" (raro luxo que só podíamos permiti-nos em ocasiões especiais!) ou o Café, o "Colonial" que ficava logo a seguir a esta esquina e onde se ia comer em família comer às vezes "o bife". Para cima, ia-se para o 'Chile' Lisboa 'acabava' praticamente logo a seguir, no Areeiro: só o ukltrapassavam os raríssimos felizardos que podiam permitir-se o luxo bizantino de ir viajar de avião...

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