Tenho para mim que um dos grandes equívocos do cinema [e da cultura em geral] se prende directamente com a ideia de que a meta final da Arte não está, em última instância, na própria tensão dialéctica como tal que idealmente se estabelece entre a consciência, individual e conjunto das limitações que se objectivamente se opõem ao seu "épanouissement" particular mas, para além dessa mesma dialéctica, num "lugar estético e mental" arquetípico e meta-histórico, de natureza impossivelmente providencial que apenas uns quantos iluminados logram alcançar.
Trata-se daquilo a que chamo a visão "horizontal ou finalista" da História e da realidade em geral---uma espécie de "oozing" ou "escorrência cosmovisional" do universo conceptivo [e... "conceptivizador"] da tradição inteleccional judaico-cristã onde vieram, como é sabido, acolher-se diversas linhas de pensamento fatalista e mesmo em muitos aspectos marcadamente determinista de raiz oriental.
Num certo sentido, por outro lado, aquela visão acriticamente "continuista" que comecei por referir e que imagina que a Arte é sempre suceptível de "progrsso" e "evolução" numa espécie de direcção e sentido genéricos e---lá está!---únicos, comum às culturas em geral independentemente até das circunstâncias específicas, da História própria, dessas mersmas culturas, de algum modo; evolução essa, de algum modo, pré-determinada [associada, desde logo, por exemplo, a aspectos puramente "técnicos", em sentido amplo mas, de igual modo, especificamente artístico] da realidade decalca, de alguma forma [não-casual, longe disso!] a estreita concepção neo-colonialista de Rostow do chamado "desenvolvimento linear", discurso teórico [e globalmente teorizador] do neo-colonialismo "moderno", de resto, ainda [e de que modo!] em vigor.
Falo disto, por razões que exponho noutro lugar, concretamente a propósito de um dos meus filmes "de cabeceira" [que tive ocasião de recordar---e de rever---recentemente quando traduzi "Play" de Beckett para a "Comuna"] "Brief Encounter" de Lean, baseado numa curta peça de Noel Coward intitulada "Still Life".
Relativamente ao filme de Lean [que vi pela primeira vez, ainda na década de '50, num ciclo de "Cinema Inglês do Pós-Guerra", salvo erro, no antigo S.N.I. da ditadura] ouvi e li eu diversas críticas que pretendiam pôr em relevo o fundamento auto-censório [auto-mutilador e auto-repressional da cultura que o iluminava---e, em última instância, "explicava"].
É, a meu ver, o mesmo tipo de visão da criação artística que vê wem Brian DePalma o "continuador e epígono electivo" de Hitchcock, por exemplo.
Ora, nada disto é, em bom rigor, verdade.
Dito de outro modo: a verdade [especificamente a da criação artística] é muito mais complexa do que isso.
Na re/construção de Lean, "Brief Encounter" é, com um rigor e um laconismo formal e narrativo impecável, um retrato exacto da tragédia do des-encontro [do "desconcerto do mundo", como lhe chamou Camões] mas é, de igual modo, uma perspectiva, um ponto-de-vista asceticamente preciso sobre a 'tragédia da ordem' e os seus fundamentos particulares.
Toda a ordem humana [como muito bem perceberam, primeiro, a cultura grega que fez, com Ésquilo, sobretudo, a ligação 'culturalmente crucial', 'verticial', entre o sagrado e o artístico a a própria tradição judaico-cristã---que no-lo "ensinou", plasmando-o, de forma tão subtil quanto exaustiva, para o nosso modo cultu(r)al específico de ver o mundo] é auto-sacrifício e auto-mutilação [1].
É morte: toda a cultura é idealmente uma forma consciente e interior, sempre presente, de morte---ou não é.
Cultura, quero eu dizer.
Num certo sentido preciso, como atrás, de modo um pouco diferente, recordava, "a cultura é sempre, na base, a sua própria experiência".
Uma cultura onde não haja "lugar para a morte" é sempre uma cultura perigosa de que é preciso desconfiar.
Ora, foi isso que Lean re/descobriu nesse sublime primeiro "Brief Encounter" que agora, pela enésima vez, revi com o deslumbramento de sempre [Lean dirigiria uma segunda versão, completamente inútil que, em nada, faz, de resto, justiça à primeira, protagonizada por Richard Burton e---imagine-se!---Sofia Loren de que mais vale piedosamente não falar...].
Deslumbramento que nasce precisamente, em larguíssima nmedida, da presença obsessiva, "narracionalmente translúcida" e [quase literalmente] "fantasmática", dessa componente agónica [como dizer? "Sentimentalmente crítica"] da Morte no burguêsmente trágico [em que pensar a propósito dele? Em Flaubert e "Madame Bovary"? Em Dostoievski e na "Tragédia de um Homem Ridiculo"?] romance de um anónimo clínico-geral inglês em busca de um lugar no mundo [ou na realidade, de um modo mais amplo] e de uma burguesinha suburbana londrina tímida e contida, que imaginava ter já achado o seu.
Claro que eu estou particularmente ligado, em termos emocionais [e até quasi-experienciais...] a essa Londres hoje dificilmente imaginável da 'Blitz' e do imediato pós-guerra, por razões familiares: uma tia minha que viveu a primeira dessas medonhas realidades [e no-las descrevia, ponto por ponto, horrorizada: as bombas, o filho, o meu primo Charles, filho de um primeiro casamento, levado em pânico nos braços de casa para o abrigo e, às vezes, mesmo de abrigo em abrigo, o grito lancinante das sirenes na noite gelada que eu quase ouvia nas cartas que iam chegando a Moura].
Isso e a impávida serenidade dos londrinos, a sua espantosa capacidade ['natural'?] para se conterem---e organizarem!---em face da tragédia e do horror; o modo como se converteram, por fim, com todos os seus vícios e baixezas próprios, em símbolos ideais [que tanta falta nos faziam, aliás!] da resistência obstinada à inimaginável selvajaria da "Besta", por fim, à solta num mundo que, em geral, por pura hipocrisia e sórdido interesse, pactuara longo tempo, tacitamente com ela [incluindo o "acrobata e trapezista geo-político" Chamberlain que só perante a tenaz teimosia alemã em desencadear o conflito... "cederia" a contrariar os manejos bestiais do ogre nazi]; e claro que tudo isso [e até certos nomes de lugares e mesmo marcas comerciais: o Bovril, a Heinz, a Marmite e, noutro âmbito, os Estúdios da Ealing, Alec Guinness, Margaret Rutherford e por aí fora] contribuíu para a minha adesão praticamente, estou em crer, instintiva a um filme que, de um modo ou de outro, transportava essa "minha" Londres, em larguíssima medida, indirecta e apenas inventada para o universo abstracto da reflexão existencial e do pensamento filosófico, em geral.
O filme é, porém, num certo sentido o veiculo ideal para tanto.
É, a seu modo, uma ópera---pela discretíssima intelectualização que, em meu entender, faz da própria ideia de Cultura como 'objecto quase'---diria Saramago---antropológico arquetipal fornecendo-nos uma imagem 'perfeita', definitiva, do próprio específico cultu(r)al como tal, melhor e de um modo infinitamente mais arrebatador e até, num certo sentido, trancendental do que o de muitas religiões formais...
[1] E como muito bem perceberam as tribos ditas primitivas onde este tipo específico de perspectiva ou ponto-de-vista sobre a realidade toma a forma ritual do tabu como explicação do funcionamento global dessa mesma realidade .