terça-feira, 22 de dezembro de 2009

"«Traduzindo» Beckett para português"


Para os [como eu e o Armando Nascimento Rosa, entre alguns outros] "amantes" de Beckett, deixo aqui duas das "Notas" com que me pareceu necessário dotar o meu próprio trabalho de verter para português o texto inglês de "Play", de Beckett, originalmente representado na versão alemã, intitulada "Spiel".

A primeira nota refere-se à opção de "traduzir" o título da versão inglesa, o tal "Play", não dessa mesma versão mas da francesa, também da pena do próprio Beckett e intitulada "Comédie".

Eis, então, a "Nota", tal como consta dfo documento enviado à "Comuna" que me encomendou a versão portuguesa::


[1] Entendeu o autor da versão portuguesa de “Play” recorrer supletivamente, neste [como, de resto, em diversos outros] pontos, ao texto francês da peça, da lavra do próprio Beckett, intitulado “Comédie”, solução que utilizou, na sua versão, por exemplo, desde logo, especificamente, também um pouco mais à frente [página 11] num contexto particular em que o termo em causa volta a ocorrer.
Considerou, com efeito, o tradutor mais significante e mais concisa em termos de língua portuguesa, a lição “Comédia” à alternativa da tradução literal do termo ”play”, “peça”, em seu entender, incomparavelmente menos sintética e menos conclusiva: francamente menos autónoma.


A segunda nota que aqui deixo [a 4ª do conjunto que entendi agregar ao texto traduzido] reporta-se à "tradução" [impossível de dar nas suas múltiplas sugestões e ecos sémicos] do título e reza assim:

[4] Ver nota [1].
No presente contexto, porém, haverá, ainda, no caso específico do texto inglês, que contar com uma sugestão subliminar adicional [nada despicienda, de resto—longe disso!...] envolvendo a ideia de “jogo” [“play”= “jogo”, “Spiel”, na versão alemã onde a ambiguidade, portanto, se mantém integralmente; cf. vg. a fala de M1 na página 15] remetendo, então, para a ideia possível de uma subtil potenciação do carácter de vacuidade senão mesmo de efectivo ‘absurdo’ dos gestos e atitudes exteriores [meramente exteriores?...] das personagens na medida em que essa sugestão de imaginar [?] as mesmas envolvidas [também?] num ‘jogo’ pode [em tese, pelo menos] trazer consigo uma outra sugestão implícita ulterior de cumprimento mais ou menos mecânico e impessoal, por parte delas, de ‘rituais de sociabilidade’—ou, se quisermos ir um pouco mais longe, pode trazer consigo a sugestão de uma objectiva dissociação ou mesmo des-integração, entre a vontade, o arbítrio [a liberdade?] e/ou inclusivamente o próprio desejo das personagens e os respectivos actos—algo que seria, de resto, sem dúvida, muito [mas mesmo muito!] beckettiano.
Numa opinião meramente pessoal, pensa, aliás, o autor da versão portuguesa que um dos modos possíveis de ler esta “Comédie” é justamente abordando-a, em termos globais, como uma espécie de transversal e, aos mesmo tempo, muito beckettianamente exaustiva, impiedosa e também estratégica—“cirúrgica”—des-construção de uma certa experiência/comédia ‘burguesas’ [muito... por exemplo, “noel-cowardiana”, no caso da comédia: “Spiel/Play/Comédie” poderia, nesse caso, ser uma espécie de “revisitação”—lá está!—muito beckettianamente céptica e sardónica—senão mesmo inquietantemente desesperada—de, por exemplo, uma “Still Life” de Coward, de onde David Lean extraíu, como se sabe, um soberbo “Brief Encounter” com uns inesquecíveis Celia Johnson e Trevor Howard]; comédia 'burguesa' essa cujos fundamentos retóricos e, sobretudo, volto a referir: existenciais estariam aqui a ser metodicamente reduzidos ao absurdo, encontrando-nos nós, nesse caso, perante uma espécie de concha vazia e de uma “comédia da comédia” ou “framed comedy”, ela mesma obtida, assim, por des-construção, como disse, ou, também aqui, dissociação de um certo paradigma anterior de que “Comédie” representaria, então, a contraparte ou o eco já determinadamente “absurdizantes”. Acrescente-se, também, já agora, citando—e alargando ulteriormente [“desfigurando” apenas o... estritamente necessário...]—o conceito de “dark comedy” beckettiana adiantado pela académica britânica Julie Campbell a propósito do criador de Godot, poucas vezes como aqui, nesta sombria comédia de sombras, o termo “dark” terá sido, no contexto da exegese beckettiana, empregado com tanta propriedade.



[Na imagem: "Void-otopy", colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado]

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